Um elogio à nossa negritude, no dia em homenagem a Zumbi- Por Morena Mariah *

 

No Brasil, ser negro é ser marginal. Quase 500 anos depois da chegada do primeiro navio negreiro, que trouxe pessoas africanas fruto do sequestro colonial, a experiência de ser uma pessoa negra tem sido uma existência marginalizada.

Toda sorte de significados ruins são associados à negritude, fazendo com que a maioria das pessoas nem queira se identificar com um pertencimento ligado à miséria e à dor. Mas falando mesmo de Brasil, e de uma perspectiva afrocentrada, só anos atrás conheci a história de Palmares e de Zumbi, que nomeiam o feriado de hoje, da Consciência Negra.

Em meados de 1590 uma comunidade surge onde hoje é a região do município de União dos Palmares, em Alagoas, que em seu auge chegou a contar com 30 mil habitantes. Gerações nasceram livres naquele território onde se estabeleceu o primeiro governo de africanos livres das Américas, um verdadeiro estado africano por sua forma de organização socioeconômica e política. Este governo ficou conhecido como República de Palmares, nas palavras do sociólogo negro brasileiro Clóvis Moura. Seu domínio territorial chegou a ser equivalente a um terço do tamanho de Portugal.

A historiografia tradicional sempre analisou a sociedade palmarina em contraposição ao sistema colonial, como um sistema divergente, nunca autônomo, analisado a partir de suas leis e dinâmicas internas. Como se os negros houvessem apenas fugido das práticas sociais, leis e atividades econômicas da colônia, sem reconhecer que desenvolveram eles mesmos uma organização social complexa, de herança cultural africana e indígena.

Palmares não foi destruída por ser uma ameaça imoral à civilização, como alguns eugenistas defenderam. A República de Palmares foi destruída por ameaçar a sociedade escravista, essa sim baseada em princípios imorais e letais para o curso da história humana. Foi destruída por ser um exemplo de eficiência organizacional.
O que determinou o fim foi exatamente ter se tornado um exemplo de economia alternativa, com produtividade superior à da colônia. Sua existência era um incentivo às lutas contra-coloniais e um desafio permanente para a sociedade escravista.

A República de Palmares resistiu a 27 guerras que intentavam sua destruição por parte de portugueses e holandeses ao longo de um século (1595 a 1695). Morto em 20 de novembro de 1695, Zumbi é reconhecido como o primeiro herói pan-africanista. Abdias do Nascimento diz que ele deve ser reconhecido e celebrado como exemplo de militante e fundador do pan-africanismo.

Se os chamados “civilizados” não tivessem mobilizado toda sua estrutura e seu arsenal repressor contra a República e deixassem que os palmarinos desenvolvessem suas instituições, suas forças produtivas e aprimorassem sua dinâmica econômica e social de modo pacífico como faziam internamente, o que teria acontecido com o Brasil? O que determina uma nação? Uma comunidade estável, historicamente formada, que tem sua origem na comunidade de língua, território, de vida econômica e conformação psíquica manifestada numa cultura comum. Palmares tinha tudo isso e justamente por este motivo foi tão duramente atacada. O Brasil poderia ser muito diferente se fosse mais consciente de sua negritude e aprendesse com Palmares sobre outras formas de existir.

No ano em que a lei 10.639/2003 completa 20 anos de promulgação, os desafios de promover a conscientização da sociedade brasileira sobre a contribuição africana para a cultura do país continuam existindo em larga escala, sem soluções coletivizadas que garantam a plena participação da população negra no exercício de uma cidadania verdadeira.

Há pouco mais de 150 anos, a lei da educação de 1837 proibia pessoas negras livres ou escravizadas de frequentarem a escola. Já a lei de terras de 1850 proibia negros de comprarem ou se apossarem de terras como acontecia com europeus ou asiáticos que chegavam ao país. Além destas duas leis explicitamente racistas, tivemos a lei da vadiagem de 1890, que dois anos após a lei Áurea que aboliu a escravidão formal, criminalizava a própria existência de pessoas negras, punindo com prisão quem fosse encontrado cantando samba, jogando capoeira ou simplesmente parado em uma via pública.

Hoje, apesar dessas leis não estarem em vigor, as consequências de tais medidas do Estado brasileiro se acumularam geração após geração entre a população negra e temos os piores índices em todos os indicadores de desenvolvimento humano do país. Analfabetismo, morte materno-infantil, pobreza, feminicídio… Escolha um indicador de cidadania e você verá a população negra entre os números mais aterradores. Se conscientizar dessa realidade não é uma tarefa fácil, mas urgente.

*Morena Mariah é escritora e apresentadora do podcast Afrofuturo, com foco na cultura africana. Trabalha com políticas públicas de combate ao racismo e pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Texto compartilhado.

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

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