Quem mandou matar padre Henrique? – Ricardo Leitão*
Seis anos e dez dias depois dos assassinatos da vereadora Marielle Franco (Psol/RJ) e de seu motorista Anderson Gomes, a Polícia Federal prendeu os três suspeitos de serem os mandantes dos crimes: Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro; seu irmão, o deputado federal Chiquinho Brazão (UB/RJ), e o delegado Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do estado. Os três estão presos em Brasília, por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O assassinato de Marielle Franco, 48 anos, no centro do Rio, em 14 de março de 2018, com três tiros na cabeça e um no pescoço, gerou uma comoção nacional. Nascida na favela da Maré, graduou-se em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/Rio) e fez o mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde defendeu a dissertação intitulada “UPP – A redução da favela a três nomes – uma análise da política de segurança pública no estado do Rio de Janeiro”.
Marielle entrou na política ao participar da campanha que elegeu Marcelo Freixo deputado estadual, com quem trabalhou durante dez anos, como assessora parlamentar. Foi indicada por Freixo para assessorar a Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia, quando intensificou seu apoio a vítimas de violências de policiais. Em 2016, elegeu-se vereadora pelo Rio de Janeiro, com 46 mil votos, a segunda maior votação de uma mulher ao cargo municipal, em todo o país.
A prisão dos três suspeitos, como mandantes de seu assassinato, deve responder a duas perguntas que ecoam há mais de seis anos: quem mandou matar Marielle Franco e por quê?
As motivações ainda não estão claras para a Polícia Federal. Por enquanto, a principal hipótese estaria no trabalho da vereadora junto a comunidades da zona oeste do Rio – território controlado pelas milícias. Marielle orientava as comunidades a resistir às tentativas de grilagem de terras para a construção de condomínios ilegais. A zona oeste, por outro lado, é o maior berçário de votos da família Brazão, antes já envolvida em outras investigações da Polícia Federal.
Na trama coube ao delegado Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil, planejar o assassinato da vereadora e contratar seus executores, o pistoleiro Ronnie Lessa e seu motorista, Élcio Queiroz. Os dois confessaram o crime, denunciaram os mandantes e estão presos. Rivaldo Barbosa foi nomeado para a chefia da Polícia Civil pelo general Walter Braga Neto, quando interventor federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Barbosa passou então a ser uma espécie de organizador da pistolagem no estado. Braga Neto retornou a Brasília e hoje é investigado por seu envolvimento na tentativa de golpe de dezembro de 2022.
Respondida a questão principal no caso de Marielle Franco, duas outras pairam sobre a consciência daqueles que lutam pelos direitos humanos no Brasil: quem mandou matar há 55 anos o padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, 29 anos, em 26 de maio de 1969 e por quê? O corpo do padre, um dos auxiliares mais próximos de Dom Helder Câmara, coordenador da Pastoral da Juventude da Arquidiocese de Olinda e Recife, foi encontrado em um matagal da Cidade Universitária, com marcas de espancamento, queimaduras, cortes profundos com faca e um tiro de revólver na têmpora esquerda.
Sociólogo e professor, Antônio Henrique trabalhava com grupos de estudantes em colégios e paróquias e ensinava na Cúria Metropolitana do Recife. Nunca recuou de críticas à ditadura, então no auge da repressão, depois da edição do Ato Institucional número 5, o AI 5. O padre passou a receber ameaças do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, que atuava com desenvoltura na capital. A esse grupo armado de extrema direita foram creditados os atentados, com tiros de metralhadora, ao gabinete de Dom Helder, no bairro da Boa Vista, e à casa do arcebispo nos fundos da igreja das Fronteiras. No mesmo período, o líder estudantil Cândido Pinto foi alvejado em uma parada de ônibus no bairro da Torre, ficando paralítico.
Passado mais de meio século, não existe nenhum documento oficial de conhecimento público que informe quem mandou matar o padre Henrique e por qual motivo. Propositadamente atabalhoadas, as “investigações” da Polícia Civil de Pernambuco enveredaram por falsas especulações, como o envolvimento do padre com drogados e homossexuais, numa tentava torpe de assassiná-lo moralmente, sem sucesso.
Sob a censura da ditadura, os meios de comunicação foram forçados a se calar. As informações que chegavam ao público eram transmitidas por boletins da Arquidiocese, durante as missas, a pedido de Dom Helder. Esses boletins registraram os nomes dos suspeitos de sequestrarem, torturarem e assassinarem Henrique: os investigadores da Polícia Civil de Pernambuco Rível Rocha e Humberto Serrano de Souza; o promotor público José Bartolomeu Lemos Gibson; seu parente Jerônimo Rodrigues Neto e o estudante universitário Rogério Matos do Nascimento. Todos já faleceram, à exceção de Jerônimo Neto, que se encontra gravemente doente. Nenhum deles foi indiciado no processo que investigava o crime, arquivado e mantido sob sigilo da Justiça.
O resultado se transformou em um escândalo de repercussão nacional e internacional. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) protestou; o mesmo fez o Papa Paulo VI, amigo de Dom Helder; Henrique passou a ser exemplo de mártir católico na luta contra o arbítrio. No fundo se travava o confronto da ditadura com Dom Helder, visto como um subversivo que denegria, ao denunciar a tortura, a imagem do Brasil no exterior. O confronto levou a ditadura a se mobilizar para impedir, junto com a direita católica, que Dom Helder fosse indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Teve sucesso, apesar do apoio, em favor do prêmio, por grupos de católicos franceses.
No entanto, mesmo com tamanho ódio, a ditadura sabia que não poderia assassinar o arcebispo, já àquele momento um dos nomes mais representativos da Igreja progressista. Torture-se e mate-se, então, um de seus principais assessores, para que fique a lição, escrita com sangue.
Há pontos comuns nas mortes de Marielle Franco e Antônio Henrique. Foram vitimas de forças políticas poderosas, que decidiram terminar com suas vidas, por afirmarem, durante todo o seu trabalho, o compromisso de defender os direitos humanos dos mais pobres. Porém há diferenças. Sabe-se agora quem mandou, planejou e executou o assassinato de Marielle; nada disso se sabe sobre a morte do padre. É dever manter viva a pergunta, mesmo passados 55 anos de seu assassinato: quem mandou matar Antônio Henrique Pereira da Silva Neto?
*Ricardo Leitão é jornalista
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