Quase ruim, mas muito bom – Por Cora Rónai*

 

– Eu assistia e me irritava aqui e ali, mas fui do primeiro ao último episódio numa sentada só. Apesar dos defeitos, ‘Kohrra’ tem muitas qualidades –

Vasta plantação de alguma coisa envolvida em névoas. Jovem casal deitado sobre um pano qualquer transando sem entusiasmo. Depois de alguns instantes, ela pergunta a ele o que está fazendo, como se não fosse óbvio; nós imediatamente pensamos que talvez estejamos diante de um estupro mal representado — mas não, não estamos. É só uma cena de sexo consensual mal representada (e igualmente mal escrita). Cachorros latindo ao fundo atrapalham a concentração do rapaz, que se afasta brusco, sem dizer palavra. Ela corre atrás. E eis que: tá lá um corpo estendido no chão. Ela grita e sai correndo; ele logo estará às voltas com a polícia, tendo descoberto o supracitado corpo, cabeça cheia de equimoses, garganta cortada.

Esqueçam ela. Esqueçam ele também. Nenhum dos dois terá qualquer importância ao longo dos próximos seis episódios de “Kohrra”, série policial indiana que acaba de estrear na Netflix: eles apenas foram postos lá para mostrar a “ousadia” da produção e criar um clima.

“Kohrra” quer dizer neblina em punjabi; o subtítulo brasileiro é “Por trás da névoa”.

A canhestra cena de abertura é emblemática do maior problema da minissérie: um excesso de situações e de personagens secundários que não acrescentam nada à história, e uma busca por “realismo” que resulta em algumas cenas de violência muito mais explícitas do que seria necessário.

O roteiro tropeça na ambição de abordar todas as tragédias da pauta contemporânea, da violência policial à violência doméstica, passando pela corrupção, pelo peso do patriarcado e das tradições, pelo eterno privilégio das elites, pela devastação das drogas, pela luta de classes, por homofobia, machismo, relações abusivas e mais meia dúzia de desgraças que devo estar esquecendo.

Há furos de lógica, e a solução do crime é ridícula.

Eu assistia e me irritava aqui, assistia e me indignava ali; mas… assistia.

E continuava assistindo.

Fui do primeiro ao último episódio numa sentada só porque, apesar dos defeitos, “Kohrra” tem muitas qualidades e, no saldo final, acaba sendo uma boa série, às vezes até ótima. A produção é caprichada, e há atores excepcionais em cena, sobretudo Suvinder Vicky, que faz o inspetor Balbir Singh, e Barun Sobti, que faz o seu colega Garundi.

Suvinder Vicky trabalha na contenção e nos silêncios, numa chave que lembra Irffan Khan, o extraordinário ator do filme “The lunchbox”, que conquistou corações há dez anos. Barun Sobti, ao contrário, é ação e explosão, meio corrupto, meio violento, meio perdido.

Os dois inspetores são, naturalmente, os protagonistas da trama, já que cabe a eles descobrir quem cometeu o crime. Ambos têm vidas pessoais caóticas: Singh levou a mulher ao suicídio e insiste em estragar a vida da filha, enquanto Garundi tem uma longa e estranha relação com a própria cunhada. Nenhum hesita em moer de pancada os pobres coitados que dão o azar de ser presos. Analisando friamente, são pessoas horríveis — mas são também personagens complexas e contraditórias. Eles querem sinceramente resolver a investigação, sofrem imensa pressão dos seus superiores e das famílias importantes envolvidas no caso e são, afinal, vítimas das suas circunstâncias; de modo que nos pegamos, ainda que a contragosto, torcendo por eles. Balbir Singh é quase um homem bom; Garundi é jovem e pode ser melhor no futuro.

Gente nem sempre é simples, e um dos pontos altos de “Kohrra” é perceber isso.

*Cora Rónai é jornalista, colunista (Jornal o Globo). Texto Compartilhado pelo Blogdellas.

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

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