Professora, Glória Maria nos ensinou jornalismo, viajar e a bem viver – Por Guilherme Dias*
Glória Maria foi a primeira profissional negra a conquistar uma grande visibilidade televisiva e que tinha um estilo próprio, inconfundível. Repórter e apresentadora da TV Globo durante décadas ela colecionou pioneirismos, sendo, por exemplo, a primeira jornalista a fazer um link ao vivo e a pular de paraquedas numa reportagem. Não apenas a primeira negra, mas a primeira jornalista a estar em muitos lugares e situações.
Os cabelos foram mudando ao longo das décadas e a voz marcante trazia narrações do que via pelo mundo. Cresci vendo Glória viajar e a entrevistar celebridades. Quem não se lembra da clássica conversa com o cantor Michael Jackson em sua visita ao Brasil? Sempre que ela estava na TV, parava para ver. Cresci numa família negra, que carregava o racismo consigo, então toda vez que a apresentadora aparecia na tela vinha o comentário “olha, a neguinha, com o cabelo assim ou com a roupa tal”.
Ela nunca conseguiu ser apenas uma apresentadora, sempre foi ‘a’ apresentadora negra. Por muitos anos a única e, com isso, permitiu várias gerações em sonhar em estar ali, abrindo caminhos para uma comunicação mais diversa e com outras narrativas.Já ouvi teorias da conspiração de que ela sabia de segredos da morte de Tancredo Neves, por isso, se perpetuou na Globo, e também de que tinha dormido com algum diretor. Afinal, uma mulher, negra, não podia estar tanto tempo ali só pelo seu talento. Mas Glória estava e tinha genialidade de sobra para isso. No jornalismo, nos ensinou leveza, precisão, estilo e versatilidade.
Mas para além de profissional da notícia, Glória foi viajante e foi professora em como fazer turismo para lugares inusitados, para destinos que não estavam no nosso radar. Ela rodou mais de 100 países e fez todos nós sonharmos em ter o “passaporte da Glória Maria”.
Atravessou as décadas e entrou para a era do meme com sua viagem à Jamaica. Numa visita à comunidade rastafári, experimentou maconha e andou de montanha-russa. No vídeo, ela mostra a tradição e diz que seria impossível recusar. Após tragar um grande bong, a apresentadora relata que ficou tonta e que precisou de tempo para entender o que estava acontecendo. O vídeo viralizou e se transformou em figurinha eterna no WhatsApp.
No auge da carreira, com um dos postos mais sonhados da TV, o de apresentadora do Fantástico, onde realizava as famosas viagens e entrevistas com celebridades, Glória decidiu parar. Tirou um sabático de dois anos e adotou as filhas Laura e Maria. Nos ensinava agora a bem viver e que o descanso e o tempo para si é algo que só nós podemos pautar para nós mesmos.
Ela nos deu muitas lições e ressaltava que nesses anos todos nunca deixou de ser alvo do racismo. “Continuo sofrendo preconceito, não é algo que termina. Não me dizem mais que não faço algo porque sou negra. Hoje é mais sutil, mais elaborado. Mas quando você chega no momento em que estou, tem certeza que você não supera e não se acostuma”, disse em entrevista à Marília Gabriela.
Outra lenda que envolvia a apresentadora era a sua idade, nunca dita, e sempre negada, numa tentativa de lembrar que o mais importante não era esse número, mas a jovialidade que transmitia. Glória Maria pode ter certeza de que inspirou gerações inteiras e que nessa sua última viagem deixa saudades, mas também muitas lições. Afinal, “a vida é mistério”, como ela mesma escreveu na morte do amigo Jô Soares. Obrigado professora!
*Guilherme Soares Dias é jornalista , blogueiro e consultor em diversidade.Sua página na Folha de São Paulo fala sobre viagens, afroturismo, black business e personagens . Texto compartilhado /Blogdellas
E-mail: redacao@blogdellas.com.br