Pro domo sua e indulgência tirana


Pedro Henrique Reynaldo Alves

A expressão latina pro domo sua, que significa “em causa própria”, se usa quando alguém investido de autoridade conferida por lei age em seu próprio benefício, o que infelizmente é muito comum no Brasil. É o caso do legislador que aumenta sua remuneração, ou do governante que aluga ou desapropria imóvel de parente ou amigo que estava encalhado no mercado.

No caso da atuação do Poder Judiciário, para assegurar a independência e isenção do julgador, o mesmo está impedido de atuar nos processos que tratem de interesse seu ou de seus parentes e amigos próximos. Outro princípio assegurador da isenção do Judiciário é o da inércia, pelo qual o magistrado só pode agir quando provocado por um terceiro interessado, lhe sendo vedado instaurar ou escolher os processos a serem por ele julgados. Nosso Supremo Tribunal Federal, no bizarro inquérito das “fake news” e processos dele (mal)paridos, parece ter convenientemente esquecido dessas noções elementares de direito.

Já a “graça”, prevista no art.734 do Código de Processo Penal, ineditamente concedida pelo Presidente da República ao Deputado Daniel Silveira, é um instituto reminiscente do poder de império, uma espécie de resquício absolutista, e que, embora previsto na nossa Constituição, não constitui um poder divino concedido indiscriminadamente ao soberano de plantão. Acontece que, dentro do arquétipo de um Estado Democrático de Direito, é muito óbvio não ser dado ao Presidente se valer de tal artifício para “agraciar pessoalmente” um aliado, sem uma razoável e justa motivação, elementos estes, em minha opinião, passíveis de controle judicial. A violação do princípio isonômico e a carência de motivação republicana evidenciam a nulidade do indulgente decreto.

A crise entre os poderes chegou a tal ponto em nosso País, que tanto o STF como o Presidente da República, em movimentos seqüenciados, mandaram às favas – para usar expressão de Ministro daquela Corte – os limites de suas respectivas competências, num teste de resistência democrática comprometedor de nossa estabilidade institucional e econômica.

Como nada é tão simples no mundo das “excelências”, claro que os dois lados desse embate invocam razões nobres para seus excessos. O espírito de corpo do STF é camuflado por um propósito de manutenção da ordem democrática, ameaçada por opiniões falsas veiculadas em rede, enquanto que a sanha do Presidente em fomentar a histeria bolsonarista é blindada pela pretensa proteção da liberdade de expressão que estaria ameaçada pelo próprio Poder Judiciário.

Diante desses recíprocos descalabros, nos resta a reflexão de quanto nosso País estaria melhor se o STF tivesse se preocupado com a democracia quando sepultou a Operação Lava Jato e abriu as portas do cárcere para os corruptos que por mais de uma década manietaram quase todas as nossas instituições com dinheiro roubado de nossas estatais e também o quanto nossa nação estaria em maior harmonia se o Presidente entendesse que a liberdade de expressão não vale apenas quando o que se diz lhe convém, deixando de atacar bestialmente pessoas e instituições que discordam de suas confusas e medievais ideias.

 

*Pedro Henrique Reynaldo Alves é Advogado, sócio fundador da Limongi Advocacia e ex-presidente da OAB/PE.

Foto: Divulgação

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