Price Theory and Its Uses

Joaquim Falcão*
Em 1968, foi a primeira vez que a Escola de Direito da Universidade de Harvard ofereceu a seus alunos um curso eletivo de Direito e Economia. Contabilidade para Advogados já era ensinado, com o excelente professor David Herwitz. Mas Economia, nunca.
Em 1968, tudo era mudança no mundo todo. O Harkness Hall, um imenso e moderno refeitório, tinha um enorme painel de Joan Miró. Ficava ao lado dos dormitórios do alunos, projetado pelo próprio Walter Gropius. Harvard adotara Bauhaus. Simbolizava o cosmopolitismo. Eu morava no Dane Hall, 7. Beno Sucholdoski, meu colega paulista da vida toda, morava no hall em frente.
Em 1968, assassinaram Robert Kennedy e Martin Luther King. Charles De Gaulle pregava no Canada “Vive le Québec libre!”. Tudo era Vietnam.
Em 1968, os alunos cercaram os executivos da Dow Chemical e os expulsaram do campus, onde tinham ido recrutar advogados, como de costume, para a produção de Napalm. A famosa Dow Chemical da qual, mais tarde, Golbery do Couto e Silva viria a ser presidente no Brasil.
Em 1968, era a Guerra Fria.
Em 1968, Joan Baez e Bob Dylan reinavam em Woodstock. Tudo era hippie. Em Paris de “Maio de 68”, onde fui com outro imenso amigo Paulo Sergio Pinheiro, era só barricadas.
Em 1968, no Brasil, era o Ato Institucional nº. 5. Edu Lobo ganhara no último ano do Festival da Canção da Record com “Ponteio”.
No meio de tudo e muito mais, eu gostava de jogar squash e fazer natação. E, então, li o livro que mudou minha vida.
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O primeiro curso de Direito e Economia seria dado por um conselheiro econômico do Presidente John Kennedy. O professor, alemão naturalizado americano, chamava-se Richard Musgrave. Judeu, convertido depois ao catolicismo. Era casado com a importante professora Peggy Brewer.
Musgrave devia ter sessenta anos e tinha forte sotaque germânico. Era de pouca conversa. O estereótipo de um professor-cientista da Ivy League. Total desprezo pela estética pessoal. Fartos desalinhados cabelos. Sempre de paletó esporte puxado para bege e amarrotado. Gravata mal amarrada. Sapatos velhos. Quando andava, me lembrava os pesados passos de Groucho Marx. Gentil, mas distante.
Centenas de alunos se candidataram a fazer o curso.
Escolheram apenas vinte. Dezessete de graduação e três estrangeiros do mestrado. Um francês, Jean-Pierre Jacquet, Beno Sucholdoski, meu amigo, e eu.
No Rio, o professor Carlos Leoni Siqueira tinha me obtido uma bolsa para o mestrado em Harvard. Eu estaria ligado ao famoso CEPED, Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino de Direito da Fundação Getulio Vargas, curso pioneiro em Direito de Empresa. O responsável pela área de Direito Societário era Alfredo Lamy Filho. De Direito Administrativo, Caio Tácito. E de Economia, ninguém menos que Mario Henrique Simonsen.
Mas não foi somente por isto que me candidatei ao curso. Desde os dezesseis anos, eu já trabalhava nas empresas de meu pai. Pernambucano, mas empresário no Rio e Janeiro. Hoje, agora, aos 76, faço a conta, por causa do nosso editor José Roberto, e me espanto com os mais de sessenta anos de trabalhos ininterruptos. Fui um privilegiado da vida.O fato é que já tinha perfeita noção da importância da economia, sobretudo da microeconomia, para a vida dos negócios e dos advogados societários que eu deveria também ter vivido, e não vivi. Ou vivi muito pouco.Henry Steiner, fraterno professor de Harvard, que seria meu tutor, também ligado ao Ceped, foi, com certeza, quem me conseguiu esta disputada vaga.
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O livro adotado por Musgrave foi “Price Theory and its Uses”, de Donald Stevenson Watson, professor da George Washington University. Editado pela Houghton Mifflin Company, Boston, 1963.
Comprei na cooperative da Harvard, THE COOP, no dia 23 de Janeiro de 1968.
Antes, Watson já tinha escrito o livro “Economic Policy: Business and Government”.
Este livro mudou minha vida. Não minha vida pessoal ou sentimental, é logico, mas minha vida intelectual, profissional e cívica. Mudou minha maneira de entender o mundo, o Brasil, e expandir e expandir e expandir meu conceito de direito e de democracia.
Da disciplinaridade, que ainda prevalecia nas escolas de direito, levou-me à interdisciplinaridade. Era a moda. Depois fui para a transdisciplinaridade. Agora tento me equilibrar nas ciências das complexidades.
É um livro-texto, isto é, apropriado ao ensino. Teve mais de noventa edições e foi traduzido em três línguas. No final dos capítulos, além das referências bibliográficas de praxe, tinha problemas e exercícios. E se propunha ser de nível intermediário para estudantes de administração de negócios.
Sem perder a qualidade teórica, é um livro estritamente pragmático. Pleno de exemplos reais de fácil compreensão. Por isto, não é um livro de Price Theory somente. Antes, é dos usos da teoria dos preços.
Este livro foi-me pura tortura.
Lembro que passava domingos inteiros em meu quarto estudando. Meu inglês não era lá muito bom. Mas o problema é que, quando conseguia traduzir do inglês para o português, não sabia o que significava em português! Não tinha o vocabulário, as palavras, os conceitos básicos de economia. Nunca tivera.
Muitas vezes, o mais simples conceito econômico batia de frente com o significado que eu já tinha incorporado em português jurídico. Como, por exemplo: marginal, afluente, inelástico, equilíbrio ou ótimo. Sem falar da lei dos retornos decrescentes!
Mais ainda. Para melhor ilustrar, a piorar a situação, havia inúmeras tabelas, curvas, gráficos, equações matemáticas.
M = XPx + YPy
??????????????
O livro era um decifra-me ou devoro-te. Devorou-me a maior parte das vezes.
Em compensação, guardei alguns conceitos, algumas estratégias, sobretudo epistemológicas, que vão me ajudar o resto da vida. Por razão simples. Ou não tão simples assim.
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Aprendi a diferença entre problema econômico, política econômica, modelo econômico, analise econômica e teoria econômica. Tudo hoje tão simples, mas, para um advogado, era algo nunca imaginado, acostumado a lógica formal monopolística. Aprendi que existem dois problemas com os fatos. Nem sempre é fácil dizer e identificar o que é um fato. Na economia, everywhere, são bilhões de fatos. A teoria identifica as qualidades essenciais do fatos e mostra as conexões entre eles. Teoria seleciona fatos, alinha-os e lhes dá significados.
Assim, a teoria funciona como uma espécie de ideal que corrige os erros de sua aplicação. Ou seja, a teoria é um objetivo e também um crítico ativo do real. Só existe, então, boa teoria ou teoria irrelevante. Aquela que cumpre ou que não cumpre o que promete.
Watson foi meu primeiro abandono do formal para real pragmático.
Aprendi também que inexiste teoria sem uma avaliação permanente das consequência das relações econômicas, seja entre estado e empresas, consumidores e produtores, oferta e demanda. É esta análise que faz da teoria, de qualquer teoria, estar sempre voltada para resolver o problema. E seu uso pode ser positivo ou normativo. Aprendi também que, ao contrário do que era moda então, as teorias econômicas se construíam a partir da análise da oferta de bens e serviços, Watson inverte.
Sua teoria de preço começa pela análise da demanda. Ao fazê-lo, talvez avant la lettre, coloca no centro de sua produção intelectual os indivíduos, e não as empresas. O desejo, as necessidades de consumo, e não as necessidades na produção.
A propósito, há mais de cinquenta anos atrás, Watson já apontava a eventual influência negativa do marketing empresarial na lógica da produção. Mesmo que sua teoria do preço se construa com base na teoria econômica neoclássica, que acredita na escolha racional da demanda, Watson já demonstrava a importância da psicologia, do behaviorismo e dos limites da formalização da matematização.
Aprendi ontem muito do está acontecendo hoje. A teoria econômica usufruindo das dúvidas, como ciência do comportamento, em vez de suas certezas quantitativamente formalizadas.
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No meio de uma aula, Musgrave para. Vai ao o quadro negro, escreve uma indecifrável equação e começa a discuti-la. Eu pasmo, sem nada entender. Ele disse:
“Ontem à noite na cama, antes de dormir, estava conversando com Peggy (sua esposa), e chegamos à conclusão de que esta equação esta errada.” Sua satisfação era quase euforia!
Foi o suficiente para Beno, meu colega, se virar e comentar-me: “Joaquim, estamos perdidos. Ele discute economia até antes de dormir. A esposa dele deve ser economista também”.
Peggy era, e excelente.
Na prova, no “blue book”, como se chamava, recebi nota muito baixa. E, como de costume, os professores recebiam os alunos que queriam discutir a prova. Onde errei?
Marquei hora e fui.
Conversamos. Até que ele, com certeza exausto diante de minha ignorância repetida, por mais que me explicasse, fez o que qualquer professor que é cientista sempre faz.
“Ok, Mr. Falcao.”
Deu-me uma nota mínima. Passei, e até hoje lhe sou grato.
- Joaquim Falcão, membro da Academia Brasileira de Letras-ABL, professor de Direito Constitucional e colaborador do blogdellas.
(O texto acima integra “O Livro que Mudou Minha Vida”, obra que reúne escritos de vários colaboradores – artistas , intelectuais, estudiosos – Foto-Divulgação)