Polícias da moral: Como atuam os grupos de repressão a quem viola a lei islâmica

– Instituições fiscalizadoras das leis islâmicas estão em 6 de 46 países de maioria muçulmana; existência é questionada dentro da própria religião –

Durante uma caminhada nas ruas de Teerã em 2013, a brasileira Gedilana Rabiei se distraiu por um instante e deixou o véu que cobria a sua cabeça cair. Rapidamente, uma mulher com o corpo totalmente coberto – até mesmo as mãos, em um dia em que fazia calor – por trajes islâmicos a abordou reservadamente e pediu que ela ajeitasse a vestimenta. O conselho soou como advertência em um país em que o uso do véu é obrigatório até mesmo para estrangeiras e a brasileira logo percebeu que estava diante da ação da Gasht-e Ershad, a polícia moral do país.

Nove anos depois, a Gasht-e Ershad e a existência das polícias morais ganharam notoriedade internacional com a morte da iraniana Mahsa Amini, de 22 anos, após ela ser presa por não usar o véu islâmico corretamente. Criadas com o propósito de vigiar o cumprimento de leis islâmicas, baseadas na sharia (conduta moral que os muçulmanos acreditam ser ditada por Deus), essas instituições existem em outros países de maioria muçulmana, mas são minoria entre eles. De 46 nações de maioria muçulmana, cerca de 6 possuem uma polícia moral institucionalizada, segundo o levantamento do think thank Council on Foreign Relations.

Além da mais conhecida e institucionalizada, no Irã, as polícias morais estão presentes enquanto instituições separadas da polícia geral na Indonésia, no norte da Nigéria, na Arábia Saudita, no Afeganistão e na Malásia. Elas são responsáveis não apenas por fiscalizar o cumprimento de vestes obrigatórias – a faceta mais visível destas instituições –, mas todas as leis islâmicas, que variam de país para país. Isso inclui, por exemplo, a proibição do consumo de álcool, da mistura social entre homens e mulheres que não são da mesma família, o sexo fora do casamento e o sexo entre pessoas do mesmo gênero.

Com experiência em ajuda humanitária em países da África e no Oriente Médio, Gedilana morou em outros países como uma população muçulmana, como Turquia, Mali, Afeganistão (antes da retomada do Taleban) e Níger, mas o Irã foi o único destes a ter uma polícia moral. “Quando fui abordada por essa senhora, que me chamou a atenção logo de início ter o corpo inteiro coberto, com exceção do rosto, percebi que não era uma moradora qualquer pela abordagem”, disse. “Sem que eu percebesse, ela chegou muito próximo para falar, não foi grosseira, mas advertiu que eu deveria cobrir os cabelos com o hijab.”Não foi a única vez que a brasileira viu a polícia moral atuar, nos 15 dias em que ficou no país. Em outro dia, Gedilana viu uma multidão reunida em torno de um orador no microfone em uma das estações de metrô de Teerã e, ao se aproximar, foi orientada por policiais fardados a ficar de um lado específico. “Eles separam os homens e as mulheres em tudo. No metrô e no ônibus, tem o lado do homem e o lado das mulheres. Isso aconteceu também no meio de uma multidão, o que eu achei estranho porque dividir uma multidão é muito difícil”, contou.

Raízes da polícia da moralidade

A origem das polícias morais está nos inspetores de mercados do mundo muçulmano do século 7, segundo o escritor, jornalista e pesquisador turco Mustafá Akyol. Inicialmente, eles tinham a tarefa de prevenir crimes e fraudes em uma instituição forte no islã nascente – grande parte dos muçulmanos, incluindo Maomé, eram mercadores –, mas tiveram o papel ampliado para cumprir o dever do Alcorão de “comandar o certo e proibir o errado”. “Embora o dever de ‘comandar o que é certo e proibir o que é errado’ incumbisse a todos os muçulmanos, eram esses funcionários nomeados pelo Estado que faziam cumprir fisicamente as regras”, explica Akyol.“Com o passar do tempo, o policiamento religioso se tornou o principal dever do muhtasib (nome árabe dado aos inspetores), enquanto a supervisão do mercado tornou-se trivial”, acrescenta.

O papel dos inspetores, no entanto, começou a ser questionado dentro do próprio islamismo: qual seria o valor da adoração, por exemplo, se ela fosse realizada apenas por medo do muhtasib, não por temor a Deus?De acordo com Akyol, um dos primeiros estudiosos do islã a escrever sobre essa contradição foi Hanafi-sufi Abd al-Ghani al-Nabulsi, falecido em 1731 na Turquia. Segundo a interpretação que fez do Alcorão, o dever moral deveria ser uma escolha dos muçulmanos porque o texto sagrado afirma que “não há coação na corrupção”. Em outro trecho, al-Nabulsi interpretou que o Alcorão deixava a lição de que “em vez de julgar os outros, seria melhor que os muçulmanos passassem tempo examinando suas próprias almas”.

Blogdellas com Reuters-Fotos divulgação

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