Pessoas com deficiência ainda enfrentam barreiras no uso da tecnologia

 


Foi este ano que o Brasil teve o seu pior nível de acessibilidade digital desde 2019, de acordo com um estudo realizado pelo Movimento Web Para Todos e pela Big Data Corp. Em 2022, apenas 0,46% dos 21 milhões de sites analisados no levantamento estão livres de barreiras para pessoas com deficiência. Além disso, pesquisa da TIC Web Acessibilidade/Ceweb.br mostra que só 0,7% dos portais e páginas sob o domínio gov.br (federais, estaduais e municipais) são plenamente acessíveis. Os dados revelam que a tecnologia que impulsionou a bancarização de milhões de brasileiros na pandemia ainda precisa avançar para ser mais inclusiva.

Devido a essa falta de acessibilidade, o jornalista Carlos Viana teve problemas ao tentar utilizar serviços financeiros. Viana é cego, o que o impediu de usar sistemas de reconhecimento facial. Nesse tipo de autenticação, o usuário é orientado a posicionar o rosto em uma área delimitada, como um círculo, um quadrado ou retângulo. O primeiro caso aconteceu quando ele precisava pagar contas e teve o aplicativo bloqueado. Ele precisou entrar em contato com o banco para conseguir acesso, mas, sem sucesso, teve de recorrer a uma outra pessoa para ajudá-lo. O segundo caso ocorreu quando tentava obter um financiamento. Além de solicitar o reconhecimento, o aplicativo pedia que ele piscasse os olhos. “Como alguém que fez cirurgia para retirar o olho pode piscar?”.

Viana só conseguiria fazer o reconhecimento facial se fosse orientado pelo leitor de tela sobre como posicionar o rosto, um recurso de acessibilidade utilizado no celular, o que não ocorreu. Para o jornalista, hoje não existe justificativa para as empresas não pensarem nas pessoas com deficiência. “Eu me senti completamente excluído, como se elas não estivessem nem aí para mim. “Procurada, a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) afirmou em nota que os bancos devem inserir uma camada de identificação biométrica facial a cada transação em seus aplicativos até o fim do ano. A entidade destacou ainda que as instituições associadas vêm desenvolvendo ações no sentido de assegurar às pessoas com deficiência acessibilidade aos seus produtos e serviços.

A instituição, no entanto, não especificou quais medidas irá tornar, nem se a tecnologia será implantada em transações de rotina para esse grupo. O atual sistema de reconhecimento facial utilizado pelo aplicativo gov.br, do governo brasileiro, também não tem acessibilidade para pessoas cegas e com baixa visão. Em nota, a Secretaria de Governo Digital, ligada ao Ministério da Economia, disse que o mecanismo de reconhecimento facial está sendo modificado. “As funções de acessibilidade para cegos no reconhecimento facial, como orientações por voz, por exemplo, deverão ser reimplantadas ainda em 2022. Essas funcionalidades passam por validação de acessibilidade e testes com pessoas com deficiências.”

A secretaria também afirmou que o usuário dos serviços públicos digitais do governo federal dispõe de alternativas à biometria facial, a partir do login em 1 das 10 instituições financeiras parceiras. O reconhecimento facial também pode representar uma barreira para pessoas com autismo, TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e dislexia, por exemplo. É o caso da pesquisadora e especialista em acessibilidade digital Talita Pagani, que tem autismo e precisou renovar um documento obrigatório para a sua empresa.

Pela praticidade, Talita optou por fazer o processo de forma remota. Ela recebeu um link e precisou fazer o reconhecimento facial para validar um certificado digital. “Foi aí que tudo deu errado. O sistema não reconhecia o meu rosto e não apresentava claramente qual era o problema. Isso foi me deixando muito nervosa.” O processo desencadeou uma crise. “É comum que pessoas autistas sejam mais apegadas a rotinas, informações objetivas e previsíveis”, diz ela. “Foi tudo muito angustiante e exaustivo. No final, tive de ir presencialmente fazer o procedimento e mudar toda a minha rotina porque a tela não funcionou e não tive nenhuma alternativa para contornar o problema.”

Para Reinaldo Ferraz, especialista em acessibilidade digital no Ceweb.br (Centro de Estudos sobre Tecnologias Web do NIC.br), assim como qualquer tecnologia emergente, o reconhecimento facial precisa contemplar a
acessibilidade. “As variações de uso e formas de reconhecimento podem trazer barreiras e impactos sérios para pessoas com deficiência. “Reinaldo explica que as barreiras poderiam ser solucionadas seguindo as orientações de acessibilidade do W3C, Consórcio Internacional de Desenvolvimento de Padrões. Segundo ele, existem documentações específicas para tornar plataformas, sites e aplicativos acessíveis. A Lei Brasileira de Inclusão, em vigor desde 2016, exige a acessibilidade em sites de empresas com sede ou representação comercial no país ou por órgãos de governo, mas o artigo que faz essa determinação ainda não recebeu uma regulamentação específica no país.

O que fazer quando o acesso não funciona

*A pessoa com deficiência deve registrar que enfrentou barreira de acesso a um direito -o que equivale a uma forma de discriminação pela legislação brasileira;

*Ela pode solicitar solução ou uma “adaptação razoável”. Caso não seja atendida, deve formalizar reclamações aos responsáveis pela fiscalização do serviço -Banco Central, no caso de instituições financeiras, e Procon, para relações de consumo

* Canais de denúncia de violações de direitos humanos estão disponíveis via disque 100, Ligue180, aplicativo Direitos Humanos Brasil e por meio do site ouvidoria.mdh.gov.br

Redação com o Jornal a Folha de São Paulo – Foto: Divulgação

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