O valor de uma Safira- Por Cícero Belmar *

Quando Gilvan me contou, profundamente consternado, que Safira Le Barone sofreu um aborto espontâneo, reagi como se espera num momento como aquele. Depois, eu lhe perguntei quem era Safira, pois no HD de minha cabeça não constava aquele nome. “É a minha gata”.

Gilvan estava transtornado. É um homem de seus trinta e tantos anos e mora com a mãe. Trabalha no prédio onde resido e nós conversamos todos os dias. Uma pessoa alto astral, de energia positiva, está sempre de bem com a vida. Mas, naquele dia, não estava nada bem. Chegou logo cedo com uma cara que só vendo. “Tenho medo de Le Barone morrer”.

A gata, segundo me contou, atende pelos dois nomes. Uma hora, Safira. Outra, Le Barone. “É nome de guerra”. Eu, continuei ouvindo, consternado, como convinha. Confesso minha ignorância, nunca me interessei em saber que os felinos também correm o risco de perda de gestação e desconhecia, até ali, que Gilvan criasse uma gata. Criava. E ela esteve prenhe. E perdera o filhote antes de ele nascer. “Era um filhote só”.

Gilvan só fora trabalhar naquele dia porque não é um funcionário de faltar às obrigações. E, depois, ficaria difícil justificar, pois os direitos trabalhistas não cobrem a ausência em nome da assistência aos pets.

Por Safira Le Barone, que era como uma pessoa da família, Gilvan seria capaz de muita coisa. Se soubesse da prenhez, por exemplo, daria cuidados especiais à bichana, colocado uma alimentação adequada em sua tijelinha, quem sabe até feito um acompanhamento gestacional.

Safira expulsou o filhote prematuramente. “Passou uma parte do corpo, ela não conseguiu expulsar o resto e eu tive que ajudar”, contou, com um suspiro profundo. O animalzinho ficou em casa muito molinho, miado fraco, mais para lá do que para cá. Gilvan trabalhou porque precisava do emprego, mas foi um dia difícil de vencer.

Quando largou do serviço, ele foi correndo para casa. Levou Safira para a clínica veterinária. O jeito que teve foi deixá-la internada. “Safira ficou lá, sofrendo, sem saber o que estava se passando. É de partir o coração”, ele me disse, no dia seguinte. A internação e os remédios custaram quase R$ 500, um terço do seu salário.

Como eu tenho familiares que gostam de gato, entendo Gilvan perfeitamente. No meu caso, em particular, não tenho simpatia alguma pelos felinos. Um cachorro, ainda vá lá, mesmo assim sem muita afetação. No dia seguinte ao que Safira ficou na clínica Gilvan chegou menos tenso.

Já no terceiro dia, ele voltou com o coração na mão. Era notório que Safira tinha piorado. Só havia uma solução, disse Gilvan: operar. O único jeito seria abrir o animalzinho, fazer uns procedimentos, inclusive a curetagem. “Mas só a cirurgia custa R$ 800 e eu não tenho esse dinheiro”.

Ele contou que, antes de ir ao trabalho, ajoelhou-se e rezou para São Francisco, o protetor dos animais, para pedir um milagre. “Foi o que me restou fazer”. Disse também que fora à clínica para informar que, como não tinha o dinheiro, levaria Le Barone para casa, no final do expediente.

Mas aqui a história de Safira ganha contornos extraordinários: o celular de Gilvan tocou. Era da clínica. Para informar que a doutora iria operar Safira senão ela morreria. Em resumo, de graça. “A gente pensa que não existe mais gente boa no mundo. Esse mundo ainda tem jeito”.

Amanhã, já sei, Gilvan chegará perfumadíssimo, dando gargalhadas, porque a vida é boa. Como Safira Le Barone estará ótima, espero ver Gilvan falando do seu tema predileto: os cremes para passar no corpo.

*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Já ganhou duas vezes o Prêmio Literário Lucilo Varejão, da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife; e outras duas vezes o Prêmio de Ficção da Academia Pernambucana de Letras. É membro da APL . Texto compartilhado pela RUBEM e Blogdellas.

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

Compartilhar