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O quebra-cabeça do autismo

2 de abril é o Dia Mundial da Conscientização do Autismo. 1% da população está no espectro autista. Só no Brasil, são 2 milhões de pessoas. Agora a genética começa a desvendar esse quebra-cabeça.

Greta Thunberg é autista. Mas isso é irrelevante para o seu trabalho. “Eu tenho Asperger, e isso significa que, às vezes, sou um pouco diferente do padrão”, escreveu a ativista no Twitter. “Não fico falando em público sobre meu diagnóstico porque quero escondê-lo, mas porque sei que muitas pessoas ignorantes ainda encaram isso como uma doença, ou algo negativo.” Os discursos que a sueca de 16 anos deu na abertura da Cúpula do Clima da ONU, em setembro – e na COP24, em dezembro de 2018 –, foram ocasiões históricas: uma pessoa autista foi ouvida pelo mundo de igual para igual ao abordar um assunto que não fosse o próprio autismo. 

E bota ouvida nisso: o protesto que a adolescente iniciou por conta própria, ocupando a entrada do parlamento sueco por três semanas com cartazes que convocavam uma paralisação em prol do clima, inspirou um movimento que levou milhões de jovens às ruas no mundo todo. “Greve climática” acabaria sendo eleita a expressão do ano de 2019 pelo dicionário Collins. Os apoiadores e críticos de Greta em geral não a julgam pelo distúrbio – e ela própria prefere mantê-lo longe dos holofotes. Greta é uma pessoa como todas deveriam ser: reconhecida pelo que faz, e não pelo que é. Esse é um marco na inclusão adequada dos autistas na sociedade.

Pessoas com Asperger querem saber tudo sobre seu tópico de interesse, e suas conversas dificilmente serão sobre outros temas. Os gostos são os mais variados: letras e números, aviões de guerra, dinossauros ou, como no caso de Greta, o clima do planeta. Classificada como uma deficiência de desenvolvimento, a síndrome de Asperger é um dos muitos tons de cinza daquilo que os cientistas convencionaram chamar de TEA (Transtorno do Espectro do Autismo). Quem tem TEA lida com déficits na cognição, na capacidade de comunicação e na interação social. Exibe comportamentos repetitivos e tem dificuldade em abrir mão de sua rotina. Casos mais severos costumam implicar prejuízos no desenvolvimento da fala, problemas motores e agressividade. Mas esse é só o quadro geral. Cada uma das nuances do espectro tem suas particularidades, e reconhecer essas particularidades foi o passo mais revolucionário que a medicina já deu na compreensão do autismo.

UM NÃO: MUITOS
A ideia de “espectro” ganhou corpo na comunidade científica a partir da década de 1990, graças aos trabalhos da psiquiatra inglesa Lorna Wing. Wing foi a primeira a defender que não deveria existir uma régua única que reduzisse autismos diferentes a um diagnóstico fixo. Como os comportamentos apresentados em alguns casos podem não aparecer em outros, fica difícil colar a mesma etiqueta em todos os pacientes. A mudança de nomenclatura, apesar disso, é recente. Veio só em 2013, com a publicação da quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, feito pela Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5). Nela, os vários distúrbios da família do autismo passaram a ser reunidos sob o guarda-chuva do espectro autista.

O autismo “clássico”, assim, passou a dividir espaço com distúrbios antes classificados separadamente, como as síndromes de Asperger e Rett. Essa definição mais moderna classifica os pacientes de acordo com seu grau de funcionalidade. Em pontas diferentes desse degradê, existem pessoas que levam vidas plenamente funcionais (como Greta) e aquelas que, por causa de diferentes limitações, precisam de um acompanhamento mais próximo. Nomes como Asperger, inclusive, não são mais utilizados oficialmente. Mesmo assim, várias pessoas diagnosticadas com autismo leve ainda usam o termo para se identificar.

A obstinação que pessoas no espectro autista podem manifestar foi explorada na ficção, em produções como a série The Good Doctor (2017), que retrata a vida de um médico-residente em cirurgia com autismo,os olhos pela cena por alguns instantes. Savant, do francês “sábio”, foi a palavra escolhida para designar pessoas com disfunções neurológicas que mantêm aptidões incomuns em certas áreas. Cerca de metade dos savants é também autista.

O que explica o fato de que, entre autistas, algumas habilidades cognitivas permanecem inibidas enquanto outras são maximizadas? Não se sabe ao certo. Uma das hipóteses é que o fenômeno seja um esforço de um lado do cérebro para compensar disfunções do outro lado. Como a parte direita e a esquerda do órgão têm atribuições diferentes – uma é mais voltada ao raciocínio lógico, outra às artes plásticas e música, por exemplo –, quando uma sai de cena, que sobra expressaria excessivamente os talentos de sua alçada. Outra possibilidade é que os autistas savants sejam capazes de acessar informação no cérebro em um estado mais bruto que o normal: eles se perdem em detalhes parciais, sem captar o todo.

Uma memória fora de série só pode existir quando não se tem tanto apego emotivo por situações triviais. Em vez de o cérebro guardar um momento específico como especial, acaba capturando qualquer instante com o maior número possível de detalhes, já que a falta de apego faz nada parecer especial o suficiente para ser priorizado.

Essa explicação abre margem para uma discussão evolutiva. Na lógica darwinista, o autismo seria uma pedra no sapato – que deveria, em algum momento da história da evolução humana, ter sumido do mapa. Isso, obviamente, não aconteceu. Uma vez que adaptações mais favoráveis à sobrevivência tendem a ser incorporadas – e mudanças que tragam impacto negativo ao sucesso reprodutivo são, aos poucos, descartadas pelo processo de seleção natural –, como o autismo permanece firme e forte?

De acordo com um estudo de 2017 publicado pela Universidade Yale, algumas variantes genéticas frequentemente associadas ao autismo também têm a ver com a inteligência. Por exemplo: uma memória fotográfica privilegiada, marca registrada de algumas pessoas com TEA, costuma caminhar lado a lado com QIs altos. E disso a seleção natural gosta. Um gene que é deletério em algumas pessoas pode se manifestar positivamente no intelecto de várias outras.

Esse é só um exemplo superficial de associação. Os geneticistas estão apenas começando a mapear com precisão as centenas – quiçá milhares – de variações no DNA que estão por trás do espectro autista.

Entender como a ação cruzada de vários genes influencia o comportamento de seus possuidores é uma empreitada nos limites da biologia contemporânea. Uma empreitada atrasada: faz pouco tempo que autistas são objeto de ciência de qualidade. E não estamos falando só de genes: mesmo dados básicos são desconhecidos.

Redação com veículos (Revista Superinteressante) – Fotos: Divulgação/Revista Superinteressante

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

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