O país do futebol (feminino) – Por Cícero Belmar*

 

Marta ainda nem tinha nascido quando o pernambucano Nelson Rodrigues, através de suas crônicas esportivas, frases e expressões impagáveis, contribuía para qualificar o Brasil como país do futebol. Os textos publicados em jornais eram tão polêmicos e divertidos quanto as partidas nos estádios e, de fato, ajudaram a imortalizar as tardes de futebol na memória de torcedores. Em sua genialidade, o dramaturgo realmente deu um tom de espetáculo ao jornalismo esportivo. O que Nelson escreveria se visse Marta jogando?

Digo Marta e no mesmo instante acrescento o nome de todas as atletas da Seleção Brasileira, que em dez dias disputarão a Copa do Mundo Feminina, na Austrália. Foram convocadas: Debinha, Bia Zaneratto, Kerolin, Gabi Nunes, Geisy, Nicole, Angelina, Tainara, Aline, Letícia Izidoro, Bárbara, Camila Rodrigues, Antônia, Bruninha, Tamires, Kathellen, Lauren, Mônica Hickman, Rafaelle, Adriana, Ary Borges, Duda Sampaio, Andressa Alves, Luana, Ana Vitória e Marta. Competência é o que não falta. Todas, de times como o Orlando Pride, Benfica, Corinthians, Santos, Roma, Barcelona etc. “Em futebol, o pior cego é o que só olha para a bola”, obrigado, Nelson.

Quando o maior cronista esportivo brasileiro escreveu seus textos, em grande parte na década de 1970, o futebol feminino não existia. Não assim, como hoje. As garotas que nutriam o desejo de mostrar que também sabiam jogar, eram censuradas e desestimuladas a seguir. Não é novidade que a sociedade patriarcal sempre tentou enterrar a ousadia das mulheres sob o manto do preconceito. Sabemos das barbaridades que os machistas falam de mulheres que jogam bola. Muitos ainda hoje insistem em constranger garotas que enfrentam o mundo para expor suas habilidades.

Ainda bem que as precursoras do futebol feminino não desistiram de sua história e continuaram jogando acima de qualquer crítica. Ainda bem. Hoje, as meninas estão jogando e se jogando. Queiram ou não queiram ou juízes, agora, reinam. Marta, por exemplo, é a maior artilheira entre homens e mulheres com a canarinha. Quem fez essa constatação foi a CBF. Após um trabalho de pesquisa, constatou que a Rainha fez 116 gols em 171 jogos pela seleção brasileira. A atleta supera os números de Pelé, que até hoje é considerado o maior artilheiro da seleção masculina. Ele fez 77 gols pelo Brasil em 92 partidas. Neymar fez 69 em 113 jogos. Quer mais?

Marta foi reconhecida como a melhor do mundo por seis vezes (2006 a 2010 e 2018), pela Fifa, um estágio só alcançado e superado por Messi. Sabe Cristiano Ronaldo? Cinco vezes. Ronaldo Fenômeno, três. Entre as grandes conquistas da Rainha, no entanto, está o empoderamento das moças que querem jogar futebol num país sexista. Com competência e determinação, Marta permitiu que muitas jovens, mirando-se no seu exemplo, assumissem o dom e não se envergonhassem de gritar para o mundo que sabiam jogar futebol. Muitas vezes melhor do que jogadores homens. Foi Marta quem disse, de alguma forma, a elas, que uma força quando não é usada, e se cala, se autodesrespeita. É preciso se orgulhar.

Há duas semanas Marta, a grande, deu entrevista dizendo que foi à Austrália para “reforçar” a equipe. E que está pronta para ficar no banco, se a treinadora quiser, por causa da idade, 37. Numa frase, Marta prova sua grandeza. Mostra que tem espírito esportivo e de equipe, caráter, humildade e sororidade.

Diga se não é um privilégio, um luxo, viver num país que tem uma mulher como Marta?

*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Já ganhou duas vezes o Prêmio Literário Lucilo Varejão, da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife; e outras duas vezes o Prêmio de Ficção da Academia Pernambucana de Letras. É membro da Academia Pernambucana de Letras. Email: belmar2001@gmail.com; Instagram: @cicerobelmar. Na RUBEM, escreve quinzenalmente às segundas-feiras.

Texto compartilhado pelo blogdellas. Foto: Divulgação

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