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Lula, Janja e um abismo chinês- Por Malu Gaspar*

Causou barulho a reclamação da primeira-dama Janja da Silva a Xi Jinping sobre o TikTok na visita oficial à China. De acordo com o relato publicado no g1 pela jornalista Andréia Sadi, Janja pediu a palavra durante um jantar para dizer ao mandatário que a plataforma, de controle estatal chinês, favorece a extrema direita.

Em resposta, prossegue o relato, Xi respondeu que o Brasil tem legitimidade para regular e até banir o TikTok se quiser. Depois que o episódio se tornou público, Lula disse que foi ele quem perguntou se era possível a Xi enviar ao Brasil “uma pessoa da confiança dele para a gente discutir a questão digital”. “E ele vai mandar uma pessoa, isso que importa”, concluiu.

São muitas as camadas de erros e inadequações nesse imbróglio. O que menos interessa é o constrangimento diplomático, o fato de a primeira-dama querer falar sem estar previsto ou a ironia de que uma plataforma controlada pela China possa favorecer a extrema direita. O que deveria preocupar é a compreensão de que uma plataforma precisa ser “regulada” porque nela o discurso do inimigo político é mais bem-sucedido.

Se já não estivesse óbvio que, nesse contexto, regulação equivale a censura, passou a estar quando Lula disse que pediu para discutir com um emissário chinês formas de fazer isso. O que há na China não é regulação, é censura pura e simples.

A ideia de que criminalizar falas ou críticas de adversários pode resolver ou atenuar as dificuldades do governo nas redes sociais não é só falaciosa. É perigosa. Supondo que se aplicasse aqui um filtro à internet da mesma forma que a China, como ficaria essa “regulação” se, a partir de 2026, o presidente passar a ser de direita e resolver usar esse filtro contra o PT e as esquerdas?

As fake news, o discurso de ódio, a pedofilia on-line ou mesmo a imensa quantidade de fraudes e golpes que se aplicam nas redes por falta de regulação não são exclusividade da extrema direita.

Num país em que existem mais celulares do que habitantes e onde há mais de 480 milhões de dispositivos digitais em uso, segundo o último levantamento da Fundação Getulio Vargas, estabelecer um mínimo de civilidade no ambiente on-line vai muito além de criar algoritmos para impedir que certas palavras ou cenas apareçam nas telas.

Claro que impedir a disseminação de mentiras e de ódio é vital para a democracia, para a saúde pública e para a saúde mental de crianças e adolescentes. Mas regular é bem diferente de censurar. Apresentar a regulação como algo necessário para barrar o avanço do inimigo político no ambiente digital é reduzir a zero as chances, que já eram pequenas, de uma discussão madura e profícua sobre o assunto prosperar neste mandato.

A questão dos golpes é diferente. O Brasil virou um paraíso para golpistas na internet — do INSS ao gov.br, passando pelo Pix e pelo uso da inteligência artificial em compras e transações financeiras. Todo brasileiro conhece alguém que foi vítima de um golpe e certamente aprovaria iniciativas concretas e eficientes para solucionar o problema.

Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade, que estuda o assunto a fundo, afirma que tudo deriva da bagunça que é o sistema de identificação no Brasil. Um modelo de identidade digital único, confiável e imune a fraudes evitaria a maior parte dos golpes, ou todos, e inibiria tremendamente a corrupção.

No entanto o país patina para unificar os dados de segurança pública e nunca obedeceu à determinação de instalar a biometria para usuários do INSS.

“Se tivéssemos algo assim, um escândalo como o do INSS nunca aconteceria, porque seria possível identificar a fraude em tempo real e ainda encontrar quem fez, como fez e por que fez”, observa Lemos.

As falas de Janja e Lula embutem ainda outro equívoco — que o Brasil está à mercê de forças externas, incapaz de elaborar suas próprias leis. Exemplos recentes como a regulação das bets ou a proibição do uso de celular nas escolas mostram que não é assim.

Quando há consenso na sociedade sobre determinado assunto, a coisa anda. Não é o caso da regulação das redes, e a forma enviesada como tanto a esquerda como a direita tratam o assunto já explica o porquê.

O que fica evidente nas falas de Lula e Janja é o abismo entre o que o Planalto considera prioridade e o que as pessoas querem e precisam. Não chega a ser surpresa para um governo que demonstra imensa dificuldade em dialogar com motoristas de aplicativos, trabalhadores autônomos e empreendedores que dependem em grande parte da internet para seus negócios. Só não vale culpar as redes sociais se, em 2026, o eleitor provar que eles estavam errados.

 

*Malu Gaspar escreve para o Jornal o Globo.Artigo publicado em 15/05/2025

e-mail: redacao@blogdellas.com.br

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