Luiz Fux: ‘A História não vai perdoar aqueles que não defendem a democracia’, diz presidente do STF
– Prestes a deixar o comando do Judiciário, ministro do Supremo Tribunal Federal revela bastidores de conflitos na Praça dos Três Poderes e de conversas com militares –
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, conta que viveu “o momento mais delicado” da sua gestão em 7 de setembro de 2021. Em entrevista ao GLOBO, ele relembra que, naquele dia, teve de encarar ameaças do presidente Jair Bolsonaro e de manifestantes que planejavam invadir o prédio da Corte. Quase um ano depois e prestes a deixar o comando do Supremo, em 12 de setembro, o magistrado de carreira reconhece que, embora os ataques ao Judiciário continuem, o cenário na Praça dos Três Poderes é outro diante do apoio da sociedade ao processo eleitoral. “A História não vai perdoar aqueles que não defendem a democracia”, ressalta Fux.
O senhor deixará a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 12 de setembro, após dois anos à frente da Corte. Qual balanço o senhor faz da sua gestão?
Fomos abalroados pela pandemia, que me impôs um isolamento em relação aos meus colegas. Mesmo assim, conseguimos continuar trabalhando e reduzimos o acervo de processos, que saiu de 110 mil para dez mil, começando a chegar ao nível das Cortes mais avançadas do mundo. No que toca à crise institucional, eu me manifestei nos momentos certos e no lugar correto, no plenário do Supremo. Saio muito orgulhoso de tudo o que fiz, principalmente da coesão da Corte. Também me orgulho da internacionalização da jurisprudência do Supremo, que foi o tribunal constitucional que mais julgou casos de Covid-19.
O senhor se arrepende de algo?
Sempre me cobro muito. Então, é claro que eu gostaria de ter feito muitas coisas. Mas saio com a sensação de que fiz tudo quanto foi possível fazer. Gostaria eventualmente de fazer modificações constitucionais, mas o ambiente político não iria permitir. Eu gostaria, por exemplo, de acabar com o teto, que é um problema para a Corte na medida em que ele é a referência de todos os salários do funcionalismo público, e mais adiante até quem sabe transformar o STF em um tribunal que julga pelo plenário. A Constituição não fala em Turmas. Eu gostaria que o tribunal funcionasse sempre com a metodologia do plenário.
Qual foi o momento mais difícil da sua gestão?
Todos os dias tinham uma agonia. Tínhamos momentos de manifestação política, problemas institucionais, demandas da classe. Todo dia foi difícil. Naquele meu discurso forte em 8 de setembro do ano passado, entendi que aquilo era uma consequência do meu dever de oficio. Os ataques à Corte têm que ser defendidos pelo chefe do Judiciário. Posso diagnosticar como um dia difícil o dia anterior ao 7 de setembro.
Por quê?
Esperávamos que os manifestantes chegassem no dia 7. Eles nos surpreenderam chegando no dia 6. Havia um número expressivo de pessoas, muitos caminhões. Havia veladamente uma informação de que tentariam chegar perto do Supremo. Um grupo radical falava em invadir o Supremo. Posso diagnosticar este como o momento mais delicado. Tivemos que passar a madrugada acordados e vigilantes para que não houvesse nenhum incidente.
Algumas barreiras que estabelecemos foram vencidas. Mas o batalhão de choque da Polícia Militar conseguiu contê-los para que não chegassem nem perto do prédio. Tínhamos informações de que a entrada de um caminhão no prédio do STF poderia causar a própria implosão da sede. Tivemos um exemplo recente de um caça que passou perto do Supremo e, exatamente pela velocidade acima do som, quebrou os vidros do prédio, o que demonstra uma fragilidade do edifício. Estávamos com toda a nossa força de segurança, com as estratégias montadas. A minha responsabilidade foi muito grande. Já haviam me avisado que as Forças Armadas estariam de plantão para o caso de haver um conflito social. Então, contando com essa notícia, e mais ainda com a nossa estrutura de segurança, eu me senti bastante resguardado na minha responsabilidade de manutenção da nossa segurança.
O senhor também estará na presidência do STF no próximo dia 7 de setembro. Esse evento o preocupa?
Espero que a população comemore essa data histórica. De acordo com as informações do setor de inteligência do STF, entendo que não há necessidade de aumentar absolutamente nada da segurança. Mas, evidentemente, se houver uma repetição dos episódios do 7 de setembro de 2021, haverá um novo pronunciamento, e estamos muito preparados para esse dia. Agora, se houver manifestações orais ofensivas ao Supremo, estarei no dia 8 no plenário para defender o Poder Judiciário, as instituições brasileiras e a higidez da nossa democracia. A democracia brasileira está solidificada, e a soberania popular é algo que já está introjetado na mente do povo.
Ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Alexandre de Moraes exaltou as urnas eletrônicas e criticou o discurso de ódio. Qual foi a importância desse evento às vésperas das eleições?
A manifestação do ministro Alexandre demonstrou muita firmeza. Nunca tivemos um caso em que se demonstrasse qualquer tipo de fraude nas urnas. Achei importantíssimo o momento dessa posse. E eu faria a mesma defesa que ele fez. O simbolismo (do evento) é que o Brasil vai realizar as eleições através de urnas hígidas, de um sistema eleitoral insuspeito e acima de tudo num clima de paz. Quem ganhar as eleições vai levar.
Na presidência do STF, o senhor manteve interlocução com membros da cúpula das Forças Armadas. Qual a sua percepção da postura dos militares em relação às eleições deste ano?
O que pude depreender das conversas que tive com o ministro da Defesa (Paulo Sérgio Nogueira) e com os demais integrantes das Forças Armadas é que eles têm afirmado que são garantidores da democracia. Porque a História não vai perdoar aqueles que não defendem a democracia. Então, em todas as reuniões que tivemos, eles disseram ser democratas e que vão garantir o resultado das eleições. É o que tenho colhido das manifestações de todos eles: que vão respeitar o resultado das eleições, e que as eleições vão transcorrer normalmente.
Em maio, o senhor decidiu cancelar uma palestra depois que a segurança do STF identificou uma ameaça para a sua integridade física. Esse tipo de situação aumentou após os ataques de Bolsonaro a membros da Corte?
Vários seguidores do presidente são avessos aos ministros do STF exatamente porque decidimos questões em que eles entendem que há uma divergência moral em relação ao que eles pensam. Entendo que houve ataques visíveis ao STF, ataques absolutamente inaceitáveis, porque não é admissível mais, depois de tantos anos de uma conquista civilizatória que elevou a democracia e consequentemente o Supremo ao patamar da defesa dos direitos fundamentais. Não há mais lugar para esses arroubos de autoritarismo contra as instituições brasileiras. Isso é realmente uma violação frontal à Carta da República.
De que forma os ataques de Bolsonaro às urnas e ao sistema eleitoral podem ser punidos?
Essa questão está sub judice, e eu não posso de antemão tipificar uma conduta como crime e julgá-la depois. Isso é tarefa do Ministério Público, que tem que demonstrar se essas condutas são delitos. Como juiz eleitoral, tive uma experiência gravíssima em termos de fraude eleitoral com voto escrito. Naquela oportunidade, assisti a um espetáculo degradante, com falsificação de boletins e de cédulas. Chegou-se ao ponto absurdo do que era denominado “engravidar as urnas”, com bolos de votos colocados dentro das urnas. As urnas eletrônicas vieram para enfrentar essas fraudes, e o Brasil não aceita mais retrocessos. As urnas eletrônicas são motivo de orgulho, pois resolveram o problema das fraudes, e os ataques são indevidos.
Bolsonaro é o presidente que mais acumula investigações na história do STF. Isso chama a atenção?
Chama a atenção porque historicamente não se via essa gama de investigações contra o presidente da República. Mas não conheço o teor. É papel das autoridades próprias verificar se o fato é delituoso ou não. Eu realmente não tenho uma explicação específica, porque certamente esse número imenso de investigações vai ser apreciado pelo STF, que é o foro próprio.
As decisões do STF que influenciam atos dos Poderes Executivo e Legislativo afetam a separação de Poderes?
A separação de Poderes é uma cláusula pétrea. Entretanto, a Constituição efetivamente atribui ao Judiciário o poder de rever os atos dos demais Poderes. Quando declara a inconstitucionalidade de uma lei, o STF não está criando uma crise institucional contra o Legislativo, mas sim exercendo a sua competência. Se um ato do Executivo estiver eivado de algum vício, a própria Constituição permite que o Judiciário possa anulá-lo. O STF não sai da sua cadeira para invalidar um ato do Executivo. Alguém demanda o STF para verificar a legitimidade. Há discursos que criticam as decisões do STF em diversos segmentos da sociedade. Mas o tribunal não pode fazer uma pesquisa de opinião pública antes de decidir. Entendo que o STF deve atuar na aplicação da lei e na interpretação da lei conforme o sentimento constitucional do povo. A população, por exemplo, não aceitou a revogação do precedente da prisão em segunda instância. Fui voto vencido, mas pertenço a um colegiado.
O senhor acredita que, com dois novos integrantes na Corte, pode haver uma nova mudança desse entendimento?
Eu acho que, no momento, esse entendimento é imutável, porque está de acordo com a percepção jurídica da maioria do colegiado.
As decisões dos ministros Nunes Marques, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, têm influenciando na relação entre os ministros?
Temos como um de nossos princípios basilares o respeito à independência jurídica. Muito embora alguns votem diferente, como eu já votei diferente, a coesão se revela ou na decisão unânime, ou pelo respeito que temos ao ponto de vista do colega. A colegialidade é um sinônimo de coesão.
O STF foi criticado por ter enviado ao Congresso uma proposta de reajuste salarial de 18% para integrantes do Judiciário. Um membro do Supremo tem remuneração de R$ 39 mil. Mesmo assim, ainda é preciso reajuste?
Reconheço que a pandemia trouxe restrições econômicas. Acho que realmente o momento não é o mais oportuno. Mas a Constituição estabelece que deve haver essa revisão. Essa questão do teto deveria ser resolvida, porque envolve diversas categorias que estão vinculadas e que comprovaram que, desde 2016, não estava sendo cumprida a regra constitucional. Pode ser que não haja aumento. As críticas são totalmente procedentes. Costumo dizer que sou juiz de carreira e trabalharia até de graça no STF, porque é o grande sonho de todo juiz de carreira.
Entrevista compartilhada pelo blogdellas do Jornal o Globo (Por Thiago Bronzatto e Mariana Muniz — Brasília (21/08/2022 )