Hillary Clinton: Autora e personagem?

 

– Livro coescrito com a reconhecida Louise Penny sugere que ex-secretária de Estado tenha usado a ficção para insinuar segredos –

O leitor do romance “Estado de Terror” tem um mistério para desvendar. Precisa descobrir quem está por trás da organização terrorista que alvejou cidades europeias e, com isso, impedir o iminente ataque nuclear contra os Estados Unidos.Há um outro mistério, porém, talvez mais urgente . Decifrar o quanto de sua vida Hillary Clinton escondeu nas entrelinhas desse thriller político, de que é coautora.

Hillary, que foi secretária de Estado americana e concorreu à Presidência em 2016, escreveu “Estado de Terror” em parceria com Louise Penny, uma experiente autora do gênero detetivesco conhecida pela série “Inspetor Gamache”. Seu marido, o ex-presidente Bill Clinton, tinha feito a mesmíssima coisa ao lançar “O Dia em que o Presidente Desapareceu”, de 2018, com James Patterson, da série “Alex Cross”. É uma estratégia brilhante, dessas de raposa, como foi a longa carreira política de Hillary. O leitor não sabe como ela e Penny se dividiram na escrita, quem fez o quê. É difícil não suspeitar, nesse sentido, que Hillary tenha usado a ficção para dizer coisas que não pode expressar de outra maneira. Daí a camada adicional de mistério, um dos elementos que prendem tanto na leitura. Daí também a provocação aos biógrafos, que vão passar os próximos anos desemaranhando esse nó.

O livro conta a história de Ellen Adams, secretária de Estado americana, cargo que Hillary ocupou de 2009 a 2013. Adams trabalha para o presidente Douglas Williams, que ela detesta. Os dois inimigos são forçados a superar suas desavenças, porém, no momento em que uma crise sacode o governo, ainda nos seus primeiros meses. Bombas explodem em ônibus em Londres, Paris e Frankfurt. Ninguém assume a autoria, e a única pista que Adams tem —em uma tarefa quase de detetive— é uma mensagem enigmática enviada para uma de suas subordinadas, Anahita Dahir. Hillary e Penny levam a trama do livro por lugares como Irã, Paquistão e Rússia.

Enquanto contam essa história, as autoras jogam migalhas de pão cintilantes para o leitor, difíceis de não ver. Adams descreve o governo anterior como de “uma incompetência quase criminosa”, por exemplo. Diz que o ex-presidente “estragou tudo que tocou”. Parece falar de Donald Trump, que venceu Hillary nas eleições.Em outro trecho, a protagonista vê o premiê britânico na tela de uma videoconferência e nota seu “cabelo desgrenhado”. Surpreenderia se Hillary não estivesse pensando no ex-premiê Boris Johnson, famoso por seu penteado caótico.

Quando Adams diz que “estava acostumada a ser subestimada” e que as “mulheres de meia idade bem-sucedidas costumavam ser depreciadas por homens pequenos”, por exemplo, é a voz de Hillary que soa, para quem acompanha a política americana fora da ficção. Parece ser um tipo de acerto de contas com seu entorno.O fato de que essas autoras deixaram chaves de leitura tão óbvias faz com que o leitor interrogue todo o resto. O que mais está nas entrelinhas? O presidente russo no romance, Maxim Ivanov, é na verdade o líder real, Vladimir Putin? As forças de extrema direita estão tão infiltradas assim na Casa Branca, como o livro dá a entender? Hillary viu as coisas escabrosas que Ellen viu, na função de secretária de Estado?

Críticos literários podem dizer, é claro, que não devemos misturar autor, narrador e personagem. Neste caso, porém, o risco é ignorar a mensagem que Hillary pode ter decidido deixar para trás, como legado de uma carreira política em que teve acesso a bastidores e segredos que ela nunca vai poder revelar em público, em alta voz.Mas é injusto, é claro, tratar um romance apenas por suas implicações políticas. O livro “Estado de Terror” é uma leitura leve e envolvente. Funcionaria inclusive sem o nome de Hillary na capa—onde aparece, aliás, acima do de Penny. Os capítulos acabam com ganchos novelescos, e mesmo um leitor deveras cínico acaba fisgado.

É louvável, ainda, o esforço que as autoras fazem em não criar um mundo de “nós contra eles”. É verdade que o livro coloca os Estados Unidos contra países de cultura islâmica, como Paquistão e Irã–algo infeliz. Mas o romance também faz questão de mostrar que há vilões inclusive dentro da Casa Branca.Talvez Hillary, esperta, nunca diga que parcela do romance sobre uma ameaça nuclear contra os Estados Unidos é real. Mas ela deixou um aviso claro na última linha de seus agradecimentos: “Cabe a nós garantir que a trama continue ficcional”. Serviço: Preço: R$ 69,90 (464 págs); R$ 44,99 (ebook); Autor Hillary Clinton e Louise Penny; Editora Arqueiro

Redação com veículos- Foto: Divulgação

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