Opinião

Eliana Alves Cruz: ‘Um dia minha mãe foi Giovanna Ewbank. Depois eu fui’

*Por Eliana Alves Cruz; Especial Para O GLOBO

  • Autora de ‘O crime do Cais do Valongo’ escreve que, embora seja alentador ver uma mulher branca usar seu privilégio contra o racismo, mulheres negras não são levadas a sério quando fazem o mesmo: ‘Não são vistas como mães e cidadãs que têm direitos’.

Não sei por onde começar este texto. Tantas lembranças me ocorrem e apertam meu coração que as palavras se embaralham, estrangulam, estraçalham… as palavras embargam minha voz e entalam na garganta, pois, assim como as crianças Titi e Bless, filhos do casal Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso, eu não podia gritar, mas tive a benção de — também como estas duas lindas crianças pretas —, ter uma mãe e um pai que gritavam por mim.

Acho que posso começar esta conversa por aqui. Este texto não é sobre nós, mães e pais destas pessoas que no futuro próximo serão adultos que estarão nos nossos lugares, mas sobre elas. Acompanhei toda a repercussão da atitude de Giovanna, que não pensou meia vez em açoitar com palavras a mulher que também não teve pudores em expor todo o seu ódio racial em público. Apesar do episódio tristíssimo, é sempre lindo ver a coragem agindo na defesa do que é justo.

Assistir àquela cena me jogou imediatamente no passado, na minha infância, quando fui ofendida e psicologicamente torturada por professores e alunos da escola em que estudava. Diante da tela do celular, eu não via a Giovanna, mas minha mãe, Lina Maria Alves Cruz, invadindo a sala da direção da escola em minha defesa. Esta cena jamais sairá da minha mente. Assim como Titi e Bless jamais esquecerão. E jamais esquecer uma dor tem um nome: trauma. Esta ferida não é culpa da natural reação, mas do que a provocou: o racismo.

Imediatamente escrevi nas redes sociais que gostaria de ter aquela atitude sem a preocupação da inversão de valores, ou seja, sair da situação como acusada, como culpada e não como vítima. Mulheres negras não podem gritar sem que recebam muitas críticas. Não podem externar rancor e indignação sem receberem de volta acusações e sarcasmo. Não podem defender seus filhos e serem levadas a sério por isso pelas autoridades pagas também por elas para agir. Não são vistas como mães e cidadãs que têm direitos. Exemplos não faltam e não vou gastar o pouco espaço deste artigo relatando o que uma breve pesquisa na internet dá conta de provar.

É especialmente alentador ver que uma mulher branca, ciente dos seus privilégios e responsabilidades verbaliza tanta coisa entalada em muitas gargantas. Desalentador é viver em um mundo adoecido e apodrecido pelo conceito de supremacia branca, onde pessoas com o mesmo grau de consciência de Giovanna (e também de seu marido Bruno) possam exercer seus papéis de mães e pais na defesa de suas crianças e, pessoas negras, que são o alvo do racismo diário e massacrante falem, gritem e por levantarem suas vozes em situações como aquela e naquele grau,corram riscos reais de perderem a liberdade e serem alvos de ainda mais ódio.

No entanto, uma coisa é certa: Mesmo correndo estes riscos, nós iremos gritar. Mesmo sabendo que com nossa reação este ódio se acirra, nós iremos defender sempre a nossa liberdade e o direito à vida plena, nos lugares que a gente bem entender de pisar e ocupar. Mesmo com a preocupação de sair presa no lugar daquela mulher, ninguém falaria assim não apenas com meus filhos, mas com qualquer pessoa que ao meu lado estivesse, pois, a falta de liberdade de um é a prisão de todos.

A Giovanna e Bruno, um convite: Existe uma coletividade enorme de pessoas que lidam com este drama há séculos pronta para acolher Titi e Bless. Seria lindo que pudessem potencializar esta comunidade a partir deste lugar que ocupam.

Um dia minha mãe foi Giovanna. Depois eu fui. A diferença entre nós — duas mulheres negras — e ela é apenas uma. Um dia eu e minha filha fomos Titi e Bless…e não há diferenças entre nós. Trabalhemos para que quando cresçam não precisem nunca mais reviver esta dor, mas, se for preciso, que não exista cor na voz autorizada a se indignar e consigam agir na própria defesa sem temores adicionais e da mesma maneira firme e potente que um dia sua mãe e seu pai os defenderam.

Eliana Alves Cruz é jornalista e escritora.

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