Dez marcas para a história
Será que 2022 foi mesmo uma eleição atípica, absolutamente singular?
Mal termina a apuração das urnas, dois fatos básicos se impõem. Um é o mandato delas extraído que cabe à Justiça Eleitoral consagrar; o outro é a inscrição na história, com a dimensão devida, do seu significado. Se o primeiro é automático, observados os ritos legais, o segundo exige uma leitura panorâmica das muitas facetas que envolvem o processo eleitoral. Escolhendo focar sobretudo os números, comecemos por questionar uma assertiva prenunciada desde o início da campanha: será que 2022 foi mesmo uma eleição atípica, absolutamente singular?
Até então, convinha-se, esse papel estava reservado à 1989. E não apenas por ter sido o evento inaugural da sequência de disputas presidenciais desse ciclo republicano. Ela encerra três características que dificilmente serão igualadas. Única eleição “solteira”, sem a escolha do Chefe de Estado ser acompanhada por nenhuma outra categoria. Apresentaram-se, como resultado do destampe da redemocratização, vindas do mais amplo espectro ideológico, nada menos que 21 candidaturas. E a distribuição do apoio da sociedade produziu o maior número até o momento de competidores efetivos, quase seis, em um fracionamento irrepetível.
Porém, 2022 foi muito além no que concerne a singularidades. Há pelo menos dez que vão lhe conferir indiscutível destaque nas análises históricas. Muitas delas valendo para as três Repúblicas em que tivemos competições presidenciais.
1. Comecemos pelo mais explícito. Foi a primeira disputa na qual o incumbente perdeu. Lula, FHC e Dilma triunfaram em 1998, 2006 e 2014. Adam Przewoski nos lembra que governantes buscando reeleição raramente são derrotados. Em 220 anos, os que concorreram venceram 79% das vezes.
2. Também, de modo inédito, pela primeira vez um presidente enfrentou um ex-presidente. Várias outros traços dessa conjuntura foram tributários dessa marca de excepcional centralidade nessa campanha, entre os quais o elevado agregado de rejeições. Na verdade, já havíamos tido três ex-presidentes concorrendo, além dos três incumbentes citados, mas nunca uns contra os outros. Na Quarta República, o ex Getúlio (1930-1945) voltou a se candidatar e ganhar em 1950; na Primeira, o ex, Rodrigues Alves (1902-1906), voltou a disputar (e ganhar) em 1918, e o ex, Nilo Peçanha (1909-1910) concorreu mais duas vezes (1918 e 2022), perdendo em ambas. Essa característica é diferenciada também em termos internacionais. Uma única vez, em 1912, nos EUA se deu algo parecido. O presidente Taft enfrentando o ex-presidente Theodore Roosevelt. E ambos sendo derrotados por Woodrow Wilson, Governador de Nova Jérsei, doutor em Ciência Política.
3. Foi a primeira vez no Brasil que alguém se elegeu presidente pela terceira vez, tendo concorrido seis vezes em um intervalo de 33 anos. Não há registro no mundo democrático de tantas eleições presidenciais disputadas. Nos EUA, Franklin Delano Roosevelt foi vitorioso nos quatro momentos que disputou (1932, 1936, 1940 e 1944). Na América Latina, Perón também ganhou três eleições (1946,1952 e 1973). Chávez e Evo Morales chegaram a um quarto mandato, mas a última eleição nos dois casos teve sua legitimidade questionada por cortes internacionais.
4. Pela primeira vez, um presidente é vitorioso ganhando em apenas uma das cinco regiões do país (Nordeste). FHC nas duas vezes que competiu e Lula em 2002 chegaram à frente em todas elas. Collor, em 1989, Lula em 2006, e Bolsonaro, em 2018, lideraram em quatro. Dilma, em 2010, em três regiões. Em 2014, ela ganhou em duas.
5. Tivemos a única escolha de presidentes na qual a clivagem de gênero seria decisiva. As mulheres definiram a eleição, votando maciçamente em Lula (56% X 44%). Ao passo que se dependesse dos homens Bolsonaro estaria reeleito (55% X 45%). Um forte contraste desse tipo já houvera em 2018, mas não tão inequívoco. Na média das pesquisas, Bolsonaro e Haddad empatavam na margem de erro no segmento feminino.
7. Foi a disputa mais polarizada até hoje. Muito se falou de 2018, mas os dois líderes somados tiveram apenas 75% dos votos válidos no primeiro turno. E na segunda volta, dez pontos os separaram. Neste ano, Lula e Bolsonaro concentraram 92% no primeiro round, e na disputa final a diferença foi de 1,8 ponto percentual. Pouco mais que a metade do registrado na eleição de 2014, quando Dilma bateu Aécio por 3,4 pontos. Nas outras Repúblicas a dianteira dos líderes sempre foi bastante dilatada. Na Primeira, no mínimo 20 pontos. Na Quarta, pré 1964, somente com Juscelino (+5,5) deu-se uma dianteira menor que quinze pontos entre os dois primeiros colocados (não havia dois turnos).
8. Pela primeira vez um oposicionista se elege Presidente na contramão de eleições mantenedoras nos estados e que ampliaram a representação do campo ideológico oposto no Congresso. Dos governadores candidatos, 90% se reelegeram, a maior taxa da Nova República. O que por si só mostra o quanto foi extraordinária a vitória do desafiante presidencial. E a votação dos partidos da direita para a Câmara dos Deputados chegou a 62%, três pontos a mais do que no pleito anterior. Os partidos da esquerda, campo do eleito, reuniram 31%, e os do centro foram reduzidos a sete porcento dos votos.
9. O Brasil terá o Chefe de Estado mais velho da sua história. 77 anos. Getúlio em 1950 estava com 68; Dutra com 63 quando assumiu em 1946. Recuando no tempo, Deodoro, na Proclamação da República, tinha 62 anos. E Pedro II, naquele momento (1889) estava a duas semanas de completar 64 anos. O que isso nos diz? A princípio não muita coisa. A comparação etária entre períodos só faz sentido se levada em conta a longevidade de cada contexto. A idade de Lula equivale exatamente à expectativa de hoje. Ao passo que a de Pedro II e Deodoro eram mais que o dobro da expectativa de vida do seu tempo. E Getúlio e Dutra, cerca de uma vez e meia. Se esse raciocínio serve para ponderarmos essa característica, de toda forma o próprio presidente eleito já usou esse argumento para afastar a possibilidade de uma busca da reeleição daqui a quatro anos. Embora isso, apesar de sua declaração , obviamente não poder ser precocemente descartado.
10. Por fim, nunca antes o resultado das urnas foi tão atacado. São inéditas na Nova República essas manifestações semanas a fio, com bloqueio de estradas e concentrações à frente de quartéis, pedindo intervenção militar. Protestos não são raros em outros países. Na noite do segundo turno da última eleição francesa, atos violentos ocorreram em vinte cidades, mas não tiveram continuidade. Em 2016, manifestações em Nova Iorque e Washington foram deflagradas assim que a vitória de Trump foi anunciada, mas do mesmo modo não se estenderiam. Esse padrão mudou em 2020. Todos lembramos da tentativa do mesmo Trump, agora derrotado, de confrontar o resultado das urnas, o que se prolongou até o seis de janeiro com a invasão do Capitólio. Alimentando um sentimento que perdura até hoje, com cerca de 30% dos americanos se recusando a reconhecer a vitória de Biden. Aqui, já tivemos anteriormente fortes reações ao resultado das urnas em 1922 e 1930, na Primeira República. No pós-guerra, em 1950, líderes udenistas teimaram em obstacular, sem êxito, a posse de Getúlio. Em 1955, um golpe preventivo foi necessário para assegurar a de Juscelino. E, tão logo ele assumiu, teve que enfrentar a sublevação militar de Jacareacanga. Porém, desde a redemocratização após o governo militar, a transição de poder sempre decorrera em clima pacífico. É verdade que em 2014 o PSDB questionou o resultado da eleição. Contudo, sem manifestações públicas naquele momento. Nada parecido com o que temos assistido nessas semanas. Fatos que trazem legítima interrogação sobre como poderá ser estancado esse processo de explícita contestação institucional, de matiz assumidamente autoritário.
* Sociólogo e Cientista Político – Instagram: @lavareda_antonio / Twitter: @lavaredaantonio
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