Opinião

Despertando com Proust…

Vivianne Falcão*

Quando me propuseram a pergunta sobre qual livro mudou a minha vida, vários me vieram à mente. Reminiscências de livros lidos e enredos que me fascinaram em momentos diversos logo me chegaram à memória.

Mas não precisei de muito tempo para concluir que o livro que transformou a minha existência, me enriquecendo como ser humano, foi Em busca do tempo perdido, o roman fleuve, em sete volumes, de Marcel Proust. Ele mudou, e continua a influir no meu modo de ser e agir… Proust, mais que um autor amado, é para mim uma “visão“ de mundo.

Li e reli Proust, a primeira vez, no início da década de 80, quase adolescente, depois de um ano estudando francês em Paris. Lá adquiri os seus livros, mas foi ao voltar ao Brasil que me pus à leitura metódica do escritor que fez de sua cidade e da sociedade a que pertencia uma descrição tão extensa e profunda.

Ao sair das aulas na Aliança Francesa do Boulevard Raspail, caminhava em direção ao Boulevard Saint Germain para ver as novidades nas livrarias do bairro, e logo notava que ali Proust reinava absoluto, sendo possível ao interessado adquirir as mais diversas edições de sua obra, mais também inúmeros livros sobre ele, cópias de fotografias, e cartões postais com retratos do escritor. Com o tempo, e novas idas a Paris, fui identificando lugares e ambientes que ele conheceu e descreveu com estilo e ironia ímpares.

A primeira leitura da “Recherche” me impactou esteticamente, com suas descrições minuciosas de pessoas, ambientes, paisagens, flores, vestuário, luzes, ruas… Fui atrás de tudo isso. Proust também consegue descrever sons e aromas de modo insuperável. Ele transforma o intangível em tangível. Tocada pela magia de sua imaginação saí em busca de livros, quadros, igrejas, músicas, imagens, e tudo o mais que estava ao meu alcance sobre ele e sua obra, era inevitável. Fui seduzida. Entreguei-me.

Há um componente universal no grande romance de Proust que resiste a diferenças culturais e temporais. Já me perguntei inúmeras vezes se ele resistirá ao tempo… acho que sim. Personagens como sua avó, sua mãe, Françoise, a cozinheira, Celeste, a governanta, e sentimentos humanos universais como a angústia, o medo, o ciúme, o desejo sexual, que esse grande asmático descreve garantem a perenidade de sua obra.

Reli Proust no início do século 21, e acho que ao contrário do impacto da primeira vez, que foi externo, estético, desta vez, foi interno, psicológico. É inimaginável com que precisão ele consegue desnudar a natureza humana, suas ambiguidades, conflitos, misérias e grandezas.

Sua admirável capacidade de observação, o olhar treinado, a sua mente sagaz, e uma sensibilidade rara para esmiuçar o que se passa na alma de seus personagens, sejam eles mundanos ou propensos à melancolia, exerceram sobre mim um impacto profundo, me levando a ser mais atenta e observadora. Proust, além do escritor originalíssimo, é um leitor de almas. O convívio com ele leva qualquer um a desenvolver uma enorme predisposição à autoanálise, ao que se processa na sua intimidade e na dos outros. Em Proust nada passa despercebido. Ele está sempre atento a um simples olhar de soslaio, um tom de voz, um gesto, ou à falta deles. Estamos diante de um criador de ficção que educa os sentidos de quem o lê. Os palpáveis e os não. O que é dito, ou apenas sugerido…. Proust ensina muito sobre as pessoas, sejam elas movidas por uma visão cínica da vida, ou por gestos de grandeza e solidariedade. Está tudo lá.

Para ler Proust você tem que estar atento ao texto e ao que ele sugere nas entrelinhas. Às escolhas felizes que se faz na vida, e às atitudes que podem levar à desilução ou ao desânimo. Ler Proust, quando se está entregue ao prazer do texto, pode ser uma enorme viagem… para mim foi, sem volta.

No início da sua carreira Proust foi acusado de elitista e tratar de assuntos fúteis, de salão, mas o tempo deu razão a ele. Proust escreveu sobre a aristocracia e a burguesia, e para fazer justiça, vale lembrar que a classe trabalhadora e proletária também está fartamente representada em sua obra.

Proust não é autor de uma “literatura de mexericos”, como certa feita ironizou
Borges, nem se preocupou apenas em documentar a burguesia francesa à qual
pertencia. Como bem lembra Walter Benjamin, que traduziu o primeiro volume
da “Recherche” para o alemão, Proust soube flagrar também, com precisão, tipos e situações das classes menos favorecidas da sociedade de seu tempo. Quem se puser a lê-lo logo confirmará isso.

Para mim a leitura de Proust não terminará, ele está dentro de mim, continuo a “ler” as pessoas do meu convívio, as que acabei de conhecer, as com que nunca troquei uma palavra, fazendo uma associação, involuntária ou não, às tipologias humanas descritas por ele.

Com Proust fiquei mais sensível aos efeitos que um dia de sol, o luar, a brisa do mar, o barulho do vento e das ondas, as luzes da cidade, o cheiro da chuva, o primeiro gole, Veneza, Paris, podem ter sobre mim. Passei a valorizar mais os pequenos e grandes prazeres do dia. E isto é um ganho imensurável na minha vida.

Em Proust frequentemente conseguimos ajuda para decifrar sentimentos, sensações e percepções que nos afetam, mas que pensamos não ser possíveis explicar com palavras. Ele nos faz perceber sentimentos que se passam dentro e fora de nós. E este olhar também se estende às pessoas e às situações ao redor.

Em 2000, às vésperas do meu aniversário, Joaquim, meu marido, me disse que já providenciara o meu presente, e que escolhera um novo e grande aparelho de televisão. Fiquei surpresa com a notícia, porque presentear com eletrodomésticos não faz muito o nosso estilo. Quando abri a grande caixa que me trouxe a surpresa e a alegria foram enormes.

Na verdade o presente de Joaquim era especial: uma carta manuscrita, de 5 páginas, de Proust para J. Hubert, diretor da editora Calmann Levy (Paris, 31 de dezembro de 1895), escrita com tinta violeta, em papel vergé com filigrana “Au Printemps Paris Noveau, Noveau papier français“, no formato 180 x 115 mm, e belamente emoldurada.

Joaquim a adquiriu por intermédio de nosso amigo Pedro Corrêa do Lago, um proustiano devoto. Ela está reproduzida na página 299 do primeiro volume da correspondência de Proust, organizada por Philip Kolb. Escrita aos 23 anos, e relativa à publicação de Les Plaisirs et les Jours, seu primeiro livro, a longa carta celebra de forma exemplar as difíceis relações do autor com seus editores, alternando críticas severas com palavras de simpatia.

A primeira edição do livro inaugural de Proust trazia aquarelas da famosa pintora Madeleine Lemaire — posteriormente modelo para a personagem de Madame Verdurin na Recherche —, e na carta Proust reclama pelo fato do editor ter posto mais desenhos justamente nos textos aos quais ele atribui menor importância.


O sentimento que tenho em relação a Proust é não só de admiração pela obra seminal que produziu em tão pouco tempo de vida, mas também de gratidão por tudo que aprendi com ele, seja no plano dos afetos, do conhecimento da sociedade, ou da maneira como analisa e descreve sensações provocadas pela música e pelas artes, especialmente a pintura.


Sei, naturalmente, que no plano intelectual devo muito a outros escritores, mas Proust é especial, pois tenho o sensação de que ele está presente no meu dia a dia. Sempre que posso releio algum trecho ou capítulo de Em busca do tempo perdido, e mesmo depois de anos de convívio me surpreendo com detalhes que não notara na leitura anterior. Talvez essa seja a característica que melhor defina o grande escritor, a de surpreender sempre o leitor mais atento e contumaz.


Um dos livros mais preciosos que tenho é uma edição em grande formato, facsímilada, das primeiras provas corrigidas por Proust, em 1913, de Du côté de chez Swann — Combray. Toda vez que o examino constato que estamos diante não só de um milagre estético, mas também de um exemplo magnífico de disciplina e obsessão criadora.

Parafraseando o título do livro que a escritora e psicanalista Betty Milan dedicou a Paris eu diria que o diálogo com Proust , para mim, não acaba nunca.

Vivianne Falcão, advogada, conselheira do Humanitas360 e leitora do Blogdellas. O texto acima integra “O Livro Que Mudou Minha Vida”, obra que reúne escritos de vários colaboradores -artistas, intelectuais, estudiosos.Foto: Divulgação

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