Depois do caos, da lama e das lágrimas – Ricardo Leitão*

 

O que está acontecendo no Rio Grande do Sul já é uma das maiores catástrofes ambientais, econômicas, sanitárias e sociais da história do Brasil. Nas próximas semanas, os mortos deverão chegar a 200; dois milhões de gaúchos (cerca de 19% da população de 10,8 milhões) foram atingidos pelas enchentes, em 446 dos 497 municípios do estado; cerca de 120 mil pessoas estão desabrigadas e 540 mil desalojadas; com o impacto da tragédia, o Rio Grande do Sul – quinta economia do País – deve sofrer redução de 2% em seu PIB, em 2024; quando a lama secar, virão as epidemias de doenças infecciosas, agravadas pelo frio intenso.

A relação dos desastres poderia continuar por muito mais linhas, se fossem incluídos, por exemplo, os danos de centenas de milhões de reais na infraestrutura de estradas, hospitais, escolas, terminais aéreos e rodoviários. A reação coletiva do Governo do Estado, Governo Federal, das Forças Armadas e, especialmente, de milhares de voluntários, impediu que famílias inteiras, ilhadas pela lama, corressem o risco real de morrer de fome ou de sede.

O governador Eduardo Leite (PSDB) estima que o Rio Grande do Sul necessita de R$ 19 bilhões para reconstrução de sua infraestrutura. O Governo Federal afirma que já adotou medidas, no valor total de 51 bilhões, que impactarão profundamente a economia gaúcha. Há outras estimativas que elevam a necessidade de recursos aos R$ 90 bilhões.

A rigor não se sabe no momento o total exato, até porque a lama não baixou, para que se tenha uma avaliação técnica mais certeira e se definam as ações de médio prazo e a forma mais adequada e rápida de implementá-las.
A situação remete à do furacão Katrina, em 2005, no sul dos Estados Unidos, que arrasou a cidade de Nova Orleans. Em sete anos, o governo federal norte americano gastou na região 42 bilhões de dólares, em subsídios para famílias e empresas e reconstrução da infraestrutura. No entanto, faltou planejamento na execução dos projetos – risco que pode acontecer no Rio Grande do Sul. Nos Estados Unidos, o dinheiro não foi alocado de forma eficiente e boa parte dos subsídios comerciais terminaram nos cofres de grandes empresas, que deles menos precisavam.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou um gabinete de emergência, sediado em Porto Alegre, para coordenar as ações no território gaúcho. Irá dividir a difícil missão com um governo estadual desnorteado; prefeitos às voltas com o caos em suas cidades e as eleições municipais e uma população corajosamente resistente, que, mesmo ilhada, não perde o brio nem a esperança.

Houve culpados pela tragédia do Katrina, a começar pelo presidente dos Estados Unidos, George Bush, que tardou nas providências, depois da passagem do furacão. Haverá culpados pela catástrofe no Rio Grande do Sul? Já é a hora de apontá-los? Acredito que sim, no mínimo para honrar as vítimas, que perderam tudo ou quase  tudo que tinham, até mesmo a vida.

Aos fatos. Uma semana antes das primeiras mortes pelas enchentes, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres (Cemadem), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, alertou que o estado poderia sofrer alagamentos e inundações em áreas urbanas. No dia 6 de maio, quando o Governo Federal reconheceu o estado de calamidade no Rio Grande do Sul, uma nota técnica do Centro informou que há um ano seus técnicos já apontavam a falta de estrutura de Porto Alegre para enfrentar uma grande enchente.

No mesmo ano, 2023, o então prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (PMDB), não destinou nada no orçamento municipal para prevenção contra enchentes e inundações. Foi seguido pelo governador Eduardo Leite. Em 2020, Leite desconfigurou a lei ambiental do estado; em 2021 criou o autolicenciamento privado, para empresas, e, naquele ano, permitiu barragens em áreas de preservação ambiental.

Pavimentando a mesma trilha, o Governo Federal não liberou o Sistema de Alerta de Desastre previsto há seis meses. A incúria também alcança o governo da gaúcha Dilma Rouseff, que em 2015 engavetou o relatório Brasil 40, que já antecipava calamidades climáticas no Sul, na presente década. Quando o lamaçal começou a matar, desabrigar, desalojar e flagelar milhares de pessoas, por pouco não levou o cavalo Caramelo – herói acidental de uma tragédia que em boa parte poderia ter sido minimizada.
      
A catástrofe traz, evidentemente, enormes lições. A principal delas é escancarar a lembrança de que não só as cidades gaúchas estão despreparadas para enfrentar graves desafios climáticos. Na última década, 93% dos 5.570 municípios brasileiros foram assolados por calamidades climáticas. Do total de municípios, 3.670 (66%) têm apenas baixa ou nenhuma capacidade de resistir a grandes inundações, deslizamentos e outras tragédias.

Haverá tempo para intervenções estruturais, antes de mais uma catástrofe ambiental, no Rio Grande do Sul ou em outros estados? Não se sabe com exatidão, mesmo com todos os recursos tecnológicos disponíveis. O aquecimento global é uma realidade e suas consequências, imprevisíveis. A catástrofe do Rio Grande do Sul seria resultado desse aquecimento, arriscam meteorologistas.
Os hidrologistas e cientistas indicam como primeiro passo, rumo a uma solução técnica adequada, a formação, pelo Governo Federal, de um órgão central capaz de lidar com os efeitos dos estragos, atuando em parceria com estados, municípios e instituições da sociedade. Nenhuma invenção da roda: é assim que, há décadas, enfrentam catástrofes nacionais o Reino Unido, a Austrália, a China, os Estados Unidos e a Holanda. O Brasil avançou nesse sentido, nos últimos anos, sobretudo depois dos desastres no Rio de Janeiro, em 2011, que deixaram 918 mortos. Foram criadas a legislação que organiza a Defesa Civil e as políticas de monitoramento e alerta de calamidades. Porém, continua a faltar o órgão centralizador e coordenador das ações federais, estaduais, municipais e da sociedade, nos padrões de outros países.

Considerando tal falta no Rio Grande do Sul, se enfileiram questões: quem vai pagar a reconstrução da infraestrutura do estado, de escolas e de hospitais? Quanto dinheiro virá de crédito e quanto a fundo perdido? Quem e como financiará as novas casas de mais de 300 mil famílias que foram desalojadas e desabrigadas? De quantos bilhões de reais o Rio Grande do Sul vai precisar para se reeguer?

No momento, não há respostas seguras para essas e outras questões.

Não bastasse, paira sobre a catástrofe a tenebrosa sombra da polarização política. Bolsonaristas recorrem à canalhice das redes de notícias falsas para acusar o Governo Federal de ter sido irresponsável no socorro aos gaúchos. Por outro lado, as viagens sucessivas de Lula a Porto Alegre são apontadas, por adversário, como uma forma de esvaziar a atuação do governador Eduardo Leite e recuperar espaços da esquerda no Sul, onde o presidente foi derrotado por Jair Bolsonaro em 2018.

O surdo confronto, por enquanto civilizado, sem dúvida vai se estender até as eleições municipais deste ano e avançar na campanha presidencial de 2026. É péssimo para os gaúchos, que continuam contando os mortos, feridos, desalojados, desabrigados e flagelados. Não merecem isso. Aliás, ninguém merece.

*Jornalista

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

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