Consuella e Lolita – Por Cícero Belmar*

 

Numa época em que os gays e as travestis não tinham representação nos espaços de poder, na mídia, nas instituições sociais e em lugar algum, Consuella e Lolita fizeram história no Recife. As duas personagens se impuseram e obrigaram a ser vistas de frente, marcando época numa cidade longe de ser acolhedora ao público LGBTQIA+. Recife está sempre na lista das dez mais inseguras para a população que não é heterossexual.

Consuella foi uma travesti que frequentou os bailes recifenses de Carnaval, nos anos de 1980, com fantasias luxuosíssimas. Ela viveu na Europa, onde conseguiu um padrão de vida confortável, e sempre que vinha gastar seus dólares no Carnaval, era destaque em revistas e jornais. Lolita era gay e não tinha medo de enfrentar, no braço, a força policial. As duas personagens transgrediam as normas sociais e não aceitavam se submeter ou se humilhar aos preconceitos e discriminações.

A primeira foi tema de um documentário que o cineasta e professor de cinema, Alexandre Figueirôa lançou na semana passada. Consuella, antes de fazer a transição do nome, se chamava Toninho e era pobre. Saiu do Recife, morou no Rio, onde conseguiu emprego como maquiadora, trabalhando no teatro e na televisão. Depois, foi para a França, onde virou estrela de cabarés parisienses. Glamourosa, arrasava sempre que voltava para os carnavais, participando dos concursos de fantasias dos bailes Bal Masqué e Municipal.

Lolita é tema de um romance de minha autoria, ainda inédito. Foi uma lenda do submundo e da cultura underground recifense. Ganhava a vida fazendo faxina nas casas de prostituição da zona portuária. Autodeclarava-se passivo no sexo, dizia-se “toureiro de homem” e gostava de cantar imitando Ângela Maria. Mas era arruaceiro, enfrentava policiais e não seguia cartilhas de comportamento. Um dia, avisou que iria sumir. Até hoje não se sabe o seu paradeiro. Pelo sumiço, tornou-se o El Cid da capital pernambucana.

Tanto Consuella quanto Lolita viveram em épocas bem mais complicadas para quem não fosse heterossexual. Lolita ficou famosas entre os anos 1960 e 1970, enquanto Consuella destacou-se no início da década de 1980. De uma forma ou de outra, ambas sofreram o estigma de um período em que a homossexualidade, ainda conhecida como homossexualismo, era uma doença para os conservadores. Os jornais e as televisões invisibilizavam o público LGBT+, que só ocupava o noticiário policial. Chiquérrima, Consuella furou essa bolha.

A esquerda queria distância daquele povo “invertido”. Quem era gay, afeminado ou não, não combinava com as causas revolucionárias (anos 60 e 70) ou com a militância (anos 80), que precisava ser viril e cisgênero. A direita, muito pior, achava que gays e travestis eram degenerados. A força policial mandava prender por vadiagem quem ousasse dar pinta nas ruas do comércio antes das 22h. O Recife precisa estar limpo e higienizado.

O documentário sobre Consuella e o romance de Lolita têm o mesmo mérito. Usam histórias pessoais como armas políticas, na medida em que, através das narrativas, compartilham teorias do mundo LGBTQIA+. São histórias capazes de fazer questionamentos na vida de quem assiste ou lê. A dor e a luta de Consuella e de Lolita têm um potencial coletivo não só para as consuellas e lolitas de hoje, assim como tornam a realidade da diversidade sexual mais acessível para diferentes públicos.

Se as histórias das duas personagens não fossem resgatadas seria como se não tivessem existido, num futuro próximo. Alexandre Figueirôa ainda conseguiu reunir um bom acervo sobre Consuella. Eu, pouca coisa, no caso de Lolita. A ausência da memória já é, também, o apagamento de Lolita. Fui obrigado a incorporar muito de ficção, na sua história real, para manter viva uma personagem que de fato existiu. A única forma de a história de Lolita ser contada é como falsa biografia. E para ser convincente, narrá-la no estilo de romance de formação.

O filme de Alexandre e o meu romance, no final das contas, são sobre duas personagens transgressoras e o preço que elas pagaram porque não quiseram ser controladas pelo destino. E sim pelo livre-arbítrio.

*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Já ganhou duas vezes o Prêmio Literário Lucilo Varejão, da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife; e duas vezes o Prêmio de Ficção da Academia Pernambucana de Letras. É membro da Academia Pernambucana de Letras. Escreve para a Revista RUBEM. Texto compartilhado com o Blogdellas. Foto: Divulgação.

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