Caridade e Salvação – Por Humberto Vasconcelos*

 

A euforia das grandes descobertas científicas que notabilizaram o Século XIX e os precedentes, a partir do Iluminismo, criou, em alguns intérpretes precipitados, a ilusão da felicidade. Um cronista da época chegou a construir a equação milagrosa, numa sua conhecida obra literária: “O sumo saber, somado ao sumo poder, teria como resultado inevitável a suma felicidade!”. A fórmula soaria como verdadeiro resgate do éden bíblico, paraíso perdido pela invigilância do primeiro casal.

A ciência havia acomodado as coisas no seu devido lugar. Os grandes flagelos, como as pandemias que ceifavam milhares de vidas, não seriam castigos de Deus, ainda que de nobre intenção. Imaginava-se que, com tais flagelos, o Pai Eterno garantiria o equilíbrio entre a produção e o consumo, e desta forma estaria resolvido o problema da fome e outros desastres que atormentam as criaturas.

As doenças – isto, sim – eram produzidas por seres microscópicos – revelavam convictos pesquisadores. Glória ao descobridor, Doutor Louis Pasteur. Muitos se precipitaram: A Ciência decretava a caduquice de Deus! Um poema famoso fazia sucesso – A Velhice do Padre Eterno! A religião estaria falida e não faltou quem a classificasse como “ópio do povo”. Não faltariam crônicas denunciando crimes de sacerdotes, exploração da crendice popular, revalorização das indulgências, volta à Idade Média, relíquias forjadas, e tanta coisa mais. Uma obra curiosa surgia, assinada por conhecida figura do mundo acadêmico, Pierre-Josephe Proudhon: Que é a propriedade? Eram os começos do Socialismo, naturalmene ateu.

Eis senão quando, no ano da graça de 1857, mês de abril, dia 18, surgia nas livrarias, por iniciativa de honrado editor e autoria de escritor respeitável, que, por modéstia, utilizava um pseudônimo – Allan Kardec – surgia um livro singular, O Livro dos Espíritos. Sim, era um livro dos Espíritos, organizado pelo Professor Rivail, com base em severa metodologia científica. Lido com isenção, poderia ser traduzido desta forma: “Calma, senhores. A igreja tem razão. A vida continua. Eis um livro que documenta esta informação. Os espíritos são as almas dos que partiram deste mundo e curiosamente nele continuam, ainda que invisíveis. Entre seus inúmeros atributos, que o túmulo não retira, está a sua comunicabilidade. E eis que os espíritos se comunicam e declaram-se, dessa forma, vivos!

O livro caiu nas graças dos intelectuais de ambas as margens do Sena, “rive gauche” e “rive droite”. Sim, o Rio Sena, que não gostava de brigas, conservou em margens opostas os socialistas, desde então conhecidos como ‘de esquerda’; e os conservadores, a partir daí considerados ‘de direita’.

E o céu (“Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?”, indaga o poeta atento). E o inferno? Não existem. São estados de consciência! Quantos, entre nós, estão mergulhados em atmosferas de terríveis pesadelos; e quantos, de outra parte, vão levando a vida na crença efetiva de dias melhores, porquanto a esperança terminou não escapando da caixa de Pandora e, por isso, a esperança nutre a convicção de que a vida continua. De outra parte, Deus, grandiosa mente criadora da vida e do exuberante Universo, é Pai Amoroso, de um amor igual, amor conjugado com justiça como nenhum homem sabe ainda fazer. E esse Deus de Amor, como bem o classifica Jesus de Nazaré, jamais decidiria condenar seus filhos, muito menos condená-los ao fogo inextinguível de um inferno criado por versões teológicas no mínimo equivocadas. E o purgatório? Com todo respeito, é situação também incompatível com a bondade divina, que concedeu ao homem o dom da vida eterna, segundo indiscutível testemunho do Apóstolo Paulo, em sua carta aos Romanos: “… a vida eterna é o dom gratuito de Deus! E concedeu livre arbítrio ao Espírito Humano, e a proposta do Purgatório é tão atroz quanto a outra, do Inferno. Caindo no velho Purgatório, a alma não se livraria por instância pessoal. Assim é que os que nele ainda acreditam endereçam preces piedosas em favor das almas do Purgatório.

O Livro dos Espíritos está cheio de informações essenciais em torno da vida e do que a cada um cabe realizar na vida. Num primeiro momento, reporta-se ao indivíduo em si, para proclamar que somos Espíritos imortais e os Espíritos são responsáveis pelo progresso uns dos outros. Essa honrosa atribuição que recebemos do Criador se amplia quando o livro citado se reporta aos fundamentos da encarnação. Entre os objetivos da encarnação, enumerados na resposta à questão 132, está um detalhe que pode ser identificado como missão específica de cada um de nós: “Suportar a parte que lhe cabe na Obra da Criação”. Que quer isso dizer? Que há uma tarefa específica – por isso, missão -, que cabe a cada pessoa humana, na Obra da Criação Divina. Em outras palavras, Deus que expressou seu amor e excelsa confiança em cada um de nós ao criar-nos como seres imortais e dotados de recursos que acentuam nossa honrosa semelhança com o Criador, aguarda nossa parceria com Ele na senda da Criação, isto é, Deus nos ama como filhos e nos convoca como parceiros!

Compreendemos, então, melhor o esforço de Jesus para despertar no coração do homem o que nós representamos no mundo: “Vós sois a luz do mundo”, o sal da Terra. E mais: Não se constroem cidades no alto do monte para serem escondidas. Linguagem simbólica que revela quem somos e o nosso dever de autoconhecimento, como nos alerta o filósofo ao citar uma inscrição no Oráculo de Delfos, frase seminal da própria Filosofia: “Conhece-te a ti mesmo!”Ainda o surpreendente livro insere a questão de número 625, que indaga: “Qual o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem para lhe servir de guia e modelo?”. Os Espíritos, em nome da Verdade, sintetizam a resposta numa só palavra: Jesus!

Jesus é guia e é modelo. Vem daí a ideia da imitação de Cristo, que Thomas Menfis, no longínquo Século XVI, converte em livro ainda hoje disponível, E em que consiste a imitação de Cristo? Consiste em amar, perdoar e servir. Tal é, para nós, espíritas, um dever irrenunciável. Conhecendo a responsabilidade difusa de nos ajudarmos uns aos outros na senda do progresso, sabendo, por conseqüência, que não haverá progresso que nos felicite a vida sem que tenhamos oferecido nossa colaboração ao progresso geral, é nosso dever indeclinável mitigar a dificuldade daqueles que nos acompanham na desafiante jornada da vida. Esta é a grande conquista do espírita-cristão. Ele se sabe espírito e inevitavelmente dará preferência aos aspectos espirituais da vida. Nos primórdios da militância espírita, tive o prazer de ler o livro O Cristianismo do Cristo e seus Vigários, autoria de Padre Alta, que me revelou um conceito que me encantou desde então: “Quem se dá não se esgota: Multiplica-se”.

O lema formulado pelo Codificador Allan Kardec, confirma a frase inspirada do sacerdote: Fora da Caridade, não há salvação. Caridade é um conceito síntese do amor em todas as suas manifestações. E salvação, na acepção espírita – diríamos até mesmo em sua acepção evangélica – é alcançar a saúde de espírito: sanidade e santidade são parônimos, isto é, têm a mesma etimologia. Por tais razões, não há Cristianismo sem Cristo, da mesma forma que não se admite o Centro Espírita sem ações solidárias constantes: o copo d’água que mitigue a sede dos que batem à sua porta; o pão que amenize a fome, o acolhimento sincero, a palavra que educa e consola – versões do amor cristão, que gratificam o espírito, antecipando para hoje as recompensas que as religiões prometem para amanhã.

*O professor Humberto Vasconcelos é fundador-dirigente da Casa Espírita. Orador e articulista. Texto para o Blogdellas.

Foto-Divulgação

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