Brasil de festa e desmemoria – Por Margareth Dalcomo*

 

Nesta semana que completa um ano da partida de Nélida Piñon, com quem tive por tantas vezes o privilégio da boa prosa e do aprimorar a consciência, e a que se somam tantas perdas no ano que se encerra, que se formos fazer balanço, em especial com as de Alberto da Costa e Silva, nosso maior africanista, Rosalyn Carter, e ainda Carlinhos Lyra, poeta maior de nossa música, Antonio Negri, filósofo relevante no pensamento italiano, apenas nos últimos dias, como fazer toda essa reflexão do luto, nesse período pré-natalino de festas? Deveria estar celebrando, no Brasil, um ano de alívio democrático, de recuperação do diálogo entre a ciência e o poder constituído, de redução do desemprego, entre outros indicadores e conquistas sociais, mas ainda tão distantes de nos assegurar um patamar civilizatório menos desigual.

Porém, para ser mais do que retórica, há que se registrar a desmemória que, tristemente, marca nossa cultura, que já sublimou a pandemia da Covid-19, se referindo “ao tempo da Covid” como se fosse o da gripe espanhola do século passado, que já pouco fala da invasão da Ucrânia, que se acostumou a ver cotidianamente os horrores da guerra online entre Israel e Hamas, e, domesticamente, se conforma com todos os desmandos de interesses espúrios que marcam as relações políticas diante de nossos olhos, todos os dias. Não podemos perder a consciência e o duro aprendizado de que a Covid-19 criou entre nós uma biunivocidade de lutos. Imprimiu uma partilha compulsória de expectativas, nem dando chance a qualquer perplexidade. Todo esse cenário, entre a festa, a necessidade da negação como uma tábua de sobrevivência, me faz lembrar do grande escritor George Bernanos, que numa conversa com uma freira, um dia disse: “não morremos apenas cada um por si, mas uns por outros, e algumas vezes uns em lugar de outros”.

Ora, fim de ano, festas, estamos em tempo de celebrar, como é de nosso costume. Reconhecemos merecer um certo relaxamento de tensões após anos tão difíceis nos quais, inclusive, nossos hábitos gregários foram violados por força do necessário isolamento social, responsável por tantas perdas também. Vencemos muitas adversidades e o discurso nocivo, a ciência nacional mostrou, mais do que resiliência, capacidade de produzir. Vacinamos uma grande parte de nossa população, e com quase um ano de proclamado o fim da pandemia pela OMS, controlamos as mortes pela doença. Alcançamos autonomia vacinal com as medidas tomadas pelo novo Ministério da Saúde e seguimos em direção à fabricação de vacinas sob as novas plataformas de RNA mensageiro, bem como recuperamos as coberturas de outras vacinas fundamentais para a proteção contra doenças imunopreveníveis da infância.

Diante das guerras que não podemos fazer distantes, porquanto invadem nossos dias nos meios de comunicação, fechamos o ano com as velhas crises humanitárias, com excesso de mortes de inocentes, sequestros de civis, genocídio, punição coletiva, tudo isso transformado em eufemismos, ou numa retórica insensível, que serve para maquiar a regressão do humano que vimos testemunhando e eventualmente nos acumpliciando. A utopia, essa que proclamamos, com a qual sonhamos, o contrário da entropia, ou das distopias coetâneas, tantas, que ora vivemos, sob esse senso redutor, não nos poderá paralisar. Sabemos que a paixão não pode ser antagônica à mais iluminista das racionalidades, essa que nos inspira e move, cidadãos, cientistas, artistas, pensadores, e faz mudar o mundo. Esse é o sentido do bem comum, por mais pueril que isso, ainda que genuína convicção, possa parecer.

Deixo aqui meus votos de um lindo Natal para os que o celebram, e um encorajado Ano Novo, com saúde e educação mais valorizadas, novas alegrias, calorosos reencontros, generosidade, olhar de ver os invisíveis, cuidados com os mais frágeis, mais justiça social, e muita consciência crítica.

Um feliz 2024 para todos.

*Margareth Dalcomo é pesquisadora da Fiocruz e pneumologista .Doutora em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Texto compartilhado do Blog A Hora da Ciência- Foto-Divulgação.

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

Compartilhar