As chuvas no Sul e o temor do apocalipse climático- Por Fernanda Torres*

 

Em 2006, participei das filmagens de “Saneamento Básico”, de Jorge Furtado, na região de Bento Gonçalves, na serra gaúcha. Parte do trabalho se deu em Santa Teresa, cidade banhada pelo rio Taquari. Acostumada à ocupação caótica das zonas rurais e urbanas do Rio de Janeiro, com comunidades carentes erguidas em encostas íngremes e lajes de barracos equilibradas sobre fundações precárias, me pareceu assombrosa a visão daquele Brasil apartado da desgraça social do improviso.

A casa escolhida como locação para os personagens vividos por mim e por Wagner Moura pertencia a uma família de origem italiana, produtora de laranjas e hortaliças. Quando o carro da produção estacionou diante de uma residência ampla de classe média, demorei a entender que ela pertencia a agricultores. Era inconcebível, para mim, que o campo, fora do grande negócio do agro, pudesse gerar tamanha prosperidade.

Prosperidade não no sentido de riqueza, mas de dignidade, daquilo que uma propriedade média de terra bem cultivada pode gerar para uma família do campo. Todo o entorno de Santa Teresa era assim, exemplo de colonização humana, sem ganância e sem miséria.Quando soube da tragédia, escrevi para Jorge Furtado atrás de notícias. “Secos e vivos”, me disse o diretor, “mas Santa Teresa está debaixo d’água”. Corri para o Google Earth e lá estava ela, no epicentro da inundação do Taquari.

Dezoito anos antes de “Saneamento Básico”, vivi acampada por três meses no Parque Nacional do Xingu, para a realização de “Kuarup”, de Ruy Guerra.Grande parte da filmagem se deu nas proximidades das aldeias dos yawalapitis e dos camaiurás, com apenas um deslocamento para fora do território indígena, até a cidade de Aripuanã, em Mato Grosso, para registrar uma cena na então portentosa cachoeira das Andorinhas.

Aripuanã era o velho oeste brasileiro, com ruas de terra batida, bares de garimpeiros ilegais e serrarias sem fim, que viviam de aparelhar a madeira nobre do desmatamento. Fora os aventureiros, os habitantes de Aripuanã eram todos louros de olhos azuis, descendentes de alemães e italianos trazidos dos estados do Sul pelos militares, nos anos 1970, para colonizar a floresta.

Havia, penso, na estratégia de ocupação da Amazônia do período da ditadura, a ideia de que os colonos europeus seriam capazes de domar a selva. Na prática, o que se via era um retrocesso civilizatório, com filhos e netos de trabalhadores rurais, como os que encontrei em Santa Teresa, dragados pela exploração predatória à qual foram condenados.A ascendência europeia não garantia o desenvolvimento, o erro estava no projeto extrativista de ocupação. Num solo inadequado para a cultura agrícola na qual haviam crescido, só restou aos assentados serem agentes de uma tragédia ambiental que, anos depois, faria o céu desabar sobre o estado de seus antepassados.

As chuvas recentes do Rio Grande do Sul alimentam o temor da irreversibilidade do apocalipse climático. E, para combater o derrotismo, cito o caso da lagoa Rodrigo de Freitas, no coração da zona sul do Rio de Janeiro, em torno da qual me criei. Na minha infância, a lagoa era um esgoto a céu aberto, com águas pútridas rodeadas por cimento e mortandade de peixes recorrente. Trinta e cinco anos atrás, o biólogo Mario Moscatelli decidiu recuperar o mangue por conta própria. Mais tarde, a prefeitura ampliou o canal de conexão com o mar e parcerias público-privadas se engajaram na construção de um anel de saneamento que interrompeu o despejo direto de dejetos na água.

Hoje, o bicho homem divide a sombra do manguezal de Moscatelli com capivaras, peixes, pássaros nativos e migratórios, que voltaram a habitar o local. Mas havia um trecho da ciclovia, na altura do Corte do Cantagalo, que alagava sempre que chovia. Perdi a conta das vezes em que vi a obra ser refeita, até os urbanistas se convencerem de que era inútil lutar contra a natureza. Fez-se um desvio no percurso, ampliou-se o manguezal e nunca mais foi preciso reurbanizar a área. Talvez, a exemplo da lagoa, muitos gaúchos não possam retornar aos seus locais de origem. Serão necessários recursos, ciência e planejamento para realocar a população, reinventar a economia e restituir a mata ciliar.A ameaça ambiental não é de esquerda nem de direita, mas o oportunismo eleitoral que busca votos da sanha bolsonarista não se envergonha de enaltecer um ex-presidente que incentivou o garimpo, desmantelou o Ibama, passou o philishave na mata e proibiu que o maquinário das máfias madeireiras fosse destruído.

Diante da desgraça do Rio Grande do Sul, espero que essas lideranças abandonem o populismo suicida negacionista e parem de incendiar o país.

*Fernanda Torres é atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”. Texto compartilhado pelo Blogdellas da Folha de São Paulo (15.05.2024).

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