A longa jornada de dona Alzira Rufino em defesa das mulheres negras – Por Djamila Ribeiro *

 

Alzira Rufino, a dona Alzira, despediu-se de nós na última semana, ao morrer aos 73 anos, em Santos, cumprindo uma longa jornada em defesa das mulheres negras. Vi muitas homenagens merecidas a essa figura fundamental para a luta contra o racismo e o machismo no país e presto nesse espaço as minhas homenagens.

Escrevo emocionada, pois, como feminista negra, dona Alzira foi uma das maiores referências que tive. Foi ela quem me acolheu quando tinha 19 anos de idade e, depois de trabalhar por um ano na barraca de pastel, consegui um emprego na Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos, no bairro do Boqueirão, organização que ela fundou em 1990.

Imagine um sonho: uma organização de mulheres negras sediada em um sobrado em um bairro de classe média em Santos. Agora imagine que essa organização atendia centenas de pessoas todos os meses, fornecendo atendimento jurídico, psicológico, pedagógico, além do Restaurante Afro, a preço popular, e a produção mensal da Revista Eparrei, feita por e para mulheres negras, entre tantos outros serviços.

Essa organização foi responsável por debates com convidados e convidadas de todo o país e do exterior. Marcou presença em edições do Fórum Social Mundial e conferências internacionais. Fazia, ainda, encontros para deliberações após a celebração de tratados internacionais, como o seminário após a Conferência de Durban, em 2001. Também fazia eventos para mobilizar medidas por políticas públicas no país, como a adoção de cotas raciais em universidades. Naquela época, era um sonho repleto de obstáculos; atualmente, é uma realidade com infinitos resultados positivos.

Eu trabalhava na produção desses eventos na Casa, organizando os seminários, recebendo as convidadas e convidados. Foi naquele período que estive, pela primeira vez, com Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Edna Roland, Hélio Santos, Esmeralda Ribeiro, Petronilha Beatriz, Eliane Cavalleiro e tantas mais velhas e mais velhos que desciam a serra e chegavam à Baixada Santista para os eventos organizados por dona Alzira.

Era outra época, não havia rede social, muito menos selfie. A idade era um posto e recepcionávamos, sob os olhos atentos de dona Alzira, com todo respeito e reverência. Em seguida, enquanto as mais velhas conversavam, nós, as mais jovens, ficávamos distantes, observando e imaginando sobre o que aquelas figuras tão emblemáticas falavam ao redor da mesa.

Mesmo sobre dona Alzira, não me lembro de interagirmos em um ambiente de descontração. Não havia isso, pois os anos de história no movimento eram um marcador muito simbólico. Era “sim, senhora”, “pois não, Dona Alzira”. Havia muito respeito, algo que penso que essa geração de rede social, que acha que pode escrever qualquer coisa em uma conta no Twitter, jamais vai entender.

Dona Alzira, suas companheiras de vida, dona Urivani Carvalho e dona Maria Rosa, e tantas mulheres levantaram esse lugar, que foi um orgulho santista. Havia na Casa de Cultura uma biblioteca chamada “Carolina Maria de Jesus”, com obras de mulheres negras do Brasil e de diversas partes do mundo. Imaginem o encanto que aquela menina de 19 anos, que buscava referências e respostas, sentiu ao se deparar com essa biblioteca pela primeira vez.

Falando em biblioteca, dona Alzira poeta formou uma geração de consciências. Como escreveu Lélia González sobre seus poemas: “a singular inquietude da poeta Alzira é uma forma artística de tradução das inquietudes do nosso tempo. Sobretudo se trata-se da voz da mulher e do negro; voz tão incômoda, tão produtora de ruídos, quando quer fazer-se ouvir, quando quer fazer ecoar a especificidade da sua mensagem”.

Com a força de sua mãe Iansã, ergueu um centro de referência santista de defesa das mulheres, tocou consciências com sua poesia inquieta e foi companheira, mãe, amiga, ialorixá. A Casa encerrou suas atividades em 2014 e dona Alzira decidiu não mais viver uma vida pública. Santista, filha de estivador, cumpriu um legado que marca seu nome na história da cidade e do país.

Em seu nome e em nome de todas nós, “Eu, mulher negra, resisto!”.

Obrigada, dona Alzira. Que a senhora descanse em paz.

*Djamila Ribeiro é Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais, escritora e colunista. Foto: Divulgação/Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro no Jornal Folha de São Paulo. Texto compartilhado.

E-mail redacao@blogdellas.com.br

Compartilhar