A lama, a inércia e a incompetência por Ricardo Leitão*
Há um mês, uma das maiores catástrofes da história do Brasil devasta o Rio Grande do Sul. A tragédia, provocada por tempestades incessantes e enchentes, se espalha por todo o estado. Seria maior o desastre não fossem a solidariedade, a resistência e a esperança dos gaúchos. Muito triste é considerar que tantos gestos não bastarão.
Contados os mortos, feridos, flagelados e a destruição deste primeiro mês, começa agora uma longa segunda etapa: a reconstrução. Mais de 300 mil imóveis residenciais foram atingidos, junto com indústrias, hospitais, escolas e prédios públicos. Não se sabe ainda quanto custará recuperá-los, nem o tempo necessário. O governador Eduardo Leite prevê, no mínimo, um ano; o Governo Federal não adianta estimativas.Com vastas áreas ainda ilhadas, pontes destruídas e rodovias interditadas por deslizamentos, o Rio Grande do Sul parou de produzir, o que repercute no país, uma vez que o estado é a quarta maior economia nacional.
De início, quando a urgência era salvar vidas das enxurradas, uma pergunta ficou contida. Passado um mês, agora volta: de quem foi e de quem é a culpa pela catástrofe que desaba sobre milhões de gaúchos? Nessas horas, dedos apontam para todos os lados. Seria fácil também apontar os meus, mas prefiro alinhar os fatos, para quem quiser tirar suas conclusões. A eles:
• A existência de um monitoramento adequado, pela Prefeitura de Porto Alegre e Governo do Estado, de rios, lagos, sistemas de diques e bombas da capital, poderia ter atenuado os efeitos das enchentes. Todos esses equipamentos, sem a manutenção necessária, falharam.
• A Prefeitura de Porto Alegre foi alertada, em 2018, sobre o risco de falhas no bombeamento na região central da capital, no caso de o lago Guaíba superar a cota de inundação de três metros. A informação constava de um parecer técnico de funcionários municipais.
• Uma semana antes das primeiras mortes, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, alertou que o estado poderia sofrer com grandes alagamentos e inundações em regiões urbanas.
• O governador Eduardo Leite alterou 480 normas do Código Ambiental do Rio Grande do Sul, em 2019. A medida, sancionada em 2022, acompanhou o afrouxamento da política ambiental brasileira, durante o desgoverno de Jair Bolsonaro.
• O sistema de proteção contra as chuvas em Porto Alegre, administrado pela Prefeitura da capital, recebeu 23% a menos do orçamento destinado à manutenção dos equipamentos nos últimos sete anos. No pico da tragédia neste mês de maio, comportas não funcionaram e outras deixaram passar a enxurrada.
• De 1800 a 1970, sucessivas administrações de Porto Alegre aterraram as margens do lago Guaíba, para dar espaço à construção de ruas, ampliação do porto estadual e edificação de prédios como a sede da Prefeitura e o mercado público municipal. Com a enchente do lago, a lama buscou de volta o seu espaço.
• O Governo Federal não incluiu no novo Plano de Aceleração do Crescimento dois projetos que haviam sido pleiteados, em julho do ano passado, pelo Governo do Rio Grande do Sul. Os dois prevêem a construção de diques de proteção em cidades que foram duramente atingidas pelas enchentes, como Eldorado do Sul.
• Apesar das reiteradas indicações de cientistas, climatologistas e meteorologistas, o Governo Federal não acelerou a formatação de um órgão que coordene, em parceria com estados e municípios, decisões que permitam monitorar o risco de tragédias climáticas e ações comuns para delas se prevenir. Países como a Austrália, a Inglaterra, os Estados Unidos e China já têm órgãos dessa natureza, formando uma proteção adicional em regiões sujeitas a catástrofes.
No Rio Grande do Sul pouco ou nada foi feito quanto à prevenção. Ilhados e encharcados, os gaúchos tornaram-se flagelados pelas águas, como se fossem o avesso dos brasileiros do semiárido nordestino, flagelados pela seca. O que sobrou de suas casas destruídas, entulhado em montes nas ruas interditadas, é um dos retratos mais dolorosos da catástrofe.
Com a proximidade das eleições municipais de outubro, há quem veja a tragédia com outros olhos. Líder do boicote à vacinação contra a Covid 19 em 2022, pandemia que matou mais de 700 mil brasileiros, Jair Bolsonaro anunciou que vai recolher donativos e entregá-los aos gaúchos. Certamente acredita que ficará tão notabilizado quanto o cavalo Caramelo.
*Ricardo Leitão é jornalista
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