A ciência evolui, mas falta acesso – Por Ludhmila Hajjar*

 

Esta semana foi marcante para a cardiologia mundial. No Congresso Europeu da especialidade, ocorrido em Amsterdã, na Holanda, inúmeros avanços foram demonstrados por meio de estudos científicos de alto nível, os ensaios clínicos randomizados e controlados.

Cito aqui algumas descobertas que serão revolucionárias para modificar para melhor a vida dos pacientes com doenças cardiovasculares: a) semaglutida no tratamento da insuficiência cardíaca diastólica; b) a crioablação no tratamento da fibrilação atrial; c) a dapaglifozina e a empaglifozina no tratamento da insuficiência cardíaca de fração de ejeção normal; d) a tomografia de coerência óptica na angioplastia coronária de alto risco em áreas de bifurcação (mais complexas); e) inclisirana a longo prazo (duas vezes por ano) nos pacientes com hipercolesterolemia; f) procedimentos percutâneos para implante das válvulas mitral, aórtica e tricúspide; e, g) inteligência artificial e a monitorização dos pacientes em casa com análise de riscos e alarmes definidos.

Infelizmente, ainda há um abismo de anos (até de décadas) entre a evolução da ciência e o acesso à medicina de alta complexidade oferecida aos pacientes do nosso país. Refiro-me ao Sistema Único de Saúde (SUS), que, com todas suas virtudes e êxitos, não é capaz de acompanhar a galopante corrida científica, e, assim, ficamos sem possibilidade de oferecer o que devemos à população brasileira.

O implante transcateter da valva aórtica (TAVI), por exemplo, é um procedimento seguro e eficiente, desenvolvido no início dos anos 2000. Por meio de um cateterismo, torna possível tratar a estenose da valva aórtica, doença frequente que afeta 1,5% da população na faixa entre 65 e 75 anos. Pelo menos 30% dos pacientes não têm condições de se submeterem a uma cirurgia convencional devido ao altíssimo risco, e são assim candidatos à TAVI. Em 2012, a Food and Drug Administration (FDA), agência que regula medicamentos e fármacos nos Estados Unidos, aprovou a TAVI. Em 2021, foi a vez de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também dar seu aval, mas, infelizmente, em setembro de 2023, a TAVI ainda não está disponível pelo SUS.

E assim vamos seguindo com o que está disponível, com o que é possível, e sem seguir as recomendações científicas. Cito também o caso do infarto agudo do miocárdio, que há mais de dez anos demonstra superioridade dos antiplaquetários prasugrel e ticagrelor em relação ao clopidogrel, reduzindo mortes e infarto. Há quase uma década, estamos tentando sua incorporação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), e não conseguimos. Isso faz com que tenhamos que lidar com o tratamento que não é o melhor, não é o de escolha, não segue as diretrizes e consensos internacionais, e que está atrás do resto do mundo.

O transplante cardíaco é uma intervenção complexa e de alto custo, indicado na insuficiência cardíaca avançada e refratária ao tratamento convencional. Mas, nos orgulhamos pelo fato de o Brasil possuir o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo, garantido a toda a população por meio do SUS, responsável pelo financiamento de cerca de 88% dos transplantes no país.

Isso foi possível porque, em 2001, nosso país definiu a política nacional de transplantes de órgãos e tecidos, fundamentada na legislação (Lei nº 9.434/1997 e Lei nº 10.211/2001), tendo como diretrizes a gratuidade da doação, a beneficência em relação aos receptores e não maleficência em relação aos doadores vivos. Tal decisão acertada nos orgulha por podermos tratar de maneira igual todos os pacientes, princípio elementar do nosso sistema de saúde.

*Ludhmila Hajjar é cardiologista. Recebeu o Prêmio CAPES para sua Tese de Doutorado e o Prêmio USP para Mulheres na Ciência. Texto compartilhado do Jornal o Globo. Foto-Divulgação

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

Compartilhar