A Bolívia expele gases tóxicos – Por Ricardo Leitão

 

Em 199 anos de independência, a Bolívia sofreu 194 golpes ou tentativas de golpes de Estado, um recorde mundial. Alguns cruentos, com dezenas de mortos; outros, meras quarteladas. A tentativa golpista do dia 26 de junho talvez tenha sido a mais patética, inusitada e tosca de todas. Sem apoio popular nem de setores políticos, o general Juan José Zúñiga, destituído do comando do Exército no dia anterior, invadiu o palácio presidencial, no centro de La Paz, capital da Bolívia, para prender o presidente Luis Arce. O presidente o encarou e ordenou que se retirasse com seus quatro tanques e um punhado de soldados. Horas depois, o general foi preso pela polícia, junto com outros 17 militares participantes da tentativa de golpe.

A situação, no entanto, é imprevisível. O presidente Arce é candidato à reeleição em 2025, quando será enfrentado por Evo Morales, eleito presidente em 2005, 2009 e 2014. A possibilidade de um quarto mandato de Morales seria o motivo da intentona de Zúñiga. Até o momento, não se sabe se o general agiu só ou se representa um segmento das Forças Armadas, de acordo com os modelos golpistas que proliferaram nas Américas do Sul e Central nas décadas de 1960 e 1970. Quarteladas mais recentes seguiram outros modelos e foram lideradas por civis que cooptaram militares, como se deu no Peru, com Alberto Fujimor, e na Venezuela, com Nicolás Maduro.

No Brasil, a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, encabeçada por bolsonaristas de extrema direita e com a retaguarda de militares também bolsonaristas, tinha o potencial de deflagrar uma guerra civil, não fosse a ação imediata e integrada do Estado Maior das Forças Armadas, da Presidência da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

Porém Jair Bolsonaro, mesmo fora da campanha de 2024 e 2026 por punição do Tribunal Superior Eleitoral, ainda tem força para liderar a extrema direita, a direita e os conservadores nas eleições deste ano e na disputa presidencial. Sobre o Brasil ainda pesam a inflação domada, mas não vencida; a redução dos investimentos públicos, principalmente em programas sociais; a divisão interna do governo, entre fiscalistas e desenvolvimentistas, e a reação do Congresso, majoritariamente conservador, na aprovação de projetos estruturadores.

Na Argentina, a situação é similar. O presidente Javier Milei – que se denomina líder da direita no continente – foi o único a não se solidarizar, pessoalmente, com o presidente boliviano Luis Arce. Os argentinos enfrentam desemprego e fome; o produto interno bruto desabou 5,1%, no primeiro trimestre deste ano, e a inflação anualizada já alcança 200%. O risco de uma convulsão social é permanente, liderada pela forte oposição peronista.

Ao contrário da Bolívia, no Brasil e na Argentina as Forças Armadas mantêm um obsequioso silêncio, apenas quebrado por notas oficiais nas quais é reiterada a defesa dos princípios democráticos e constitucionais. Não há por que duvidar, embora haja pela frente um oceano encapelado para se cruzar, sombreado pelas nuvens do gás tóxico boliviano. Mesmo afastando-se riscos de naufrágios no Brasil, por aqui existe a ameaça da direita de tentar virar o barco, como ocorreu depois de derrotada, em 8 de janeiro de 2023.

Apesar de inelegível, Bolsonaro é uma liderança incontestável. Desde abril visita os estados, articulando candidaturas nas principais cidades e nas capitais. A meta é eleger 1.500 prefeitos em outubro e, em 2026, conquistar a maioria no Senado e uma grande bancada na Câmara dos Deputados. Empenha-se para colocar o seu candidato no segundo turno da eleição presidencial, no mínimo. Por enquanto o nome é o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Não é pouco para uma aliança que corrói a democracia, sempre defendeu a ditadura militar e que tem como líder um ex-presidente investigado, por crimes diversos, pela Polícia Federal.
  
Na Argentina, Javier Milei não enfrenta um desafio desse porte, que no Brasil será ainda maior se Donald Trump – aliado de Bolsonaro – vencer as eleições presidenciais nos Estados Unidos, em novembro próximo. Os assessores e apoiadores de Lula sabem disso. E sabem mais: é grave, até para as relações internacionais, se as duas maiores economias da América do Sul – Brasil e Argentina – passarem a ser comandadas por presidentes de uma direita nos padrões de Milei e Bolsonaro.

Lula e a aliança de centro-esquerda que lhe dá sustentação política e eleitoral têm plena consciência do risco. É preciso reagir logo, retomando a maioria no Congresso; aumentando o investimento público; ampliando os programas de apoio aos mais pobres; combatendo a inflação, o desemprego e a fome. Um enfrentamento difícil, que mais difícil se torna quando encarado por um governo trincado pela crise autofágica, desencadeada pela disputa sucessória precoce.

Entre o boliviano Arce, o argentino Milei e Lula, o tempo político do presidente brasileiro é o mais curto – a três meses das eleições municipais de outubro. A determinação de Lula em reunificar seu ministério, buscar mais eficiência da administração e recompor a base aliada é cada vez mais evidente. Sabemos o que historicamente representará, para os brasileiros, a volta do bolsonarismo ao poder. Lula precisa ser ampla e firmemente apoiado. A derrota da centro-esquerda, neste ano e em 2026, significará um retrocesso sem antecedentes na luta pela soberania nacional, pelo desenvolvimento social e pelos direitos humanos.

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