A nova lei do aborto e outras ciladas – Por Ricardo Leitão

 

 


Até a segunda quinzena do próximo mês, quando começa o recesso parlamentar, o projeto de lei (PL) 1904, que equipara a punição para o aborto à pena em casos de homicídio, vai continuar ressoando. Depois, é muito provável que saia das manchetes e dos debates. É um projeto inconstitucional, como concluíram os 80 membros do Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Não bastasse, incluiria o Brasil em uma lista de países como o Afeganistão, El Salvador e Indonésia, conhecidos por suas violações sistemáticas aos direitos das mulheres.

O PL 1904, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados, quer discutir se a lei deve obrigar crianças vítimas de estupro à tortura física e psicológica de gestar um filho fruto da violência sexual que sofreram. No Brasil, 61,4% das vítimas de estupro têm entre zero e 13 anos e, na maior parte dos casos, são elas que descobrem, tardiamente, se estão grávidas. Muitas vezes, não denunciam a violação por medo: a cada 10 crianças abusadas, 6 foram estupradas por seus próprios familiares.

A reação das mulheres, nas redes sociais e nas ruas, junto com os protestos de instituições civilizadas, foi imediata e intensa. Patrocinador do projeto, em aliança com os bolsonaristas, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, recuou e anunciou que a matéria seria votada apenas no retorno do recesso parlamentar. Mas não arquivou o PL 1904.

A essa altura, no entanto, o projeto já cumprira a sua finalidade principal: trazer para o centro do debate a chamada “agenda de costumes”, promovida pela direita e extrema direita, enredando o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em uma discussão que lhe toma tempo, energia e divide seus aliados. E pior: susta e secundariza os entendimentos sobre a “agenda econômica”, essa sim essencial para a superação da crise que ronda o país.

A proximidade das eleições municipais estimula a oposição a organizar outras ciladas. Tramitam no Congresso mais pautas conservadoras do que no governo de Jair Bolsonaro, como a proposta que criminaliza a posse e o porte de droga em qualquer quantidade; o perdão das dívidas eleitorais dos partidos; texto que impede o Executivo de incentivar e financiar atos cirúrgicos em crianças para mudanças de gênero; derrubada de veto de Lula que reduzia a flexibilização da compra de armas e munições; projeto de castração química de condenados, mais de uma vez, por crime sexual; proibição do casamento entre pessoas do mesmo gênero e do registro de união formal por mais de dois conviventes. Além do PL 1904, no momento estandarte da “agenda de costumes” dos estupradores.

Todos esses temas são importantes e, a depender de quem por eles é tocado, prioritários. Contudo, não têm o poder de determinar rumos para o futuro, não só do governo Lula, como também para o Brasil. Fundamentais são a regulamentação da reforma tributária; o controle da inflação; os juros; a capacidade de investimento do governo; a defesa do meio ambiente; a preservação e ampliação dos programas sociais. Lula pode ser acusado de ser “abortista” e “maconheiro” pela extrema direita. Seu governo pode então até tremer, mas só arrisca cair, em 2026, se afundar em uma crise inflacionária e em um desemprego descontrolado. Parece tão óbvio que chega a ser comovente. Então, por que não se enfrenta o risco com a determinação necessária? O que se deve fazer com urgência?

Dez entre dez observadores responderão que a urgência é juntar os cacos da articulação política. O poderoso ministro da Casa Civil, Rui Costa, troca farpas com o poderoso ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Este, quando fala em reduzir recursos para os ministérios da Saúde e da Educação, é bombardeado publicamente pela direção nacional do PT. Os líderes do partido no Congresso, no Senado e na Câmara dos Deputados atuam isoladamente, enquanto a oposição derruba vetos de Lula a projetos reacionários. Há, no parlamento brasileiro, uma pauta obscurantista em tramitação e construção, que parece encarada como uma fatalidade do destino da esquerda em 2024. Caso assim se admita, o bolsonarismo vencerá neste ano, em 2026 e vai eleger os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, no início de 2025. Tragédias que se pensou não mais renasceriam, depois da vitória em 2022 da aliança de centro-esquerda.

Há tempo, dizem os otimistas; o tempo é curto, rebatem os pessimistas. Bolsonaro estará inelegível em 2026 e, por enquanto, não tem substituto para disputar o pleito presidencial. Lula não crava se vai disputar o quarto mandato daqui a dois anos, quando terá 80 anos. Em um quadro indefinido, as pesquisas pouco informam. O presidente é favorito na reeleição, porém, mesmo sem Bolsonaro no páreo, enfrentará uma disputa dura – principalmente se o candidato da direita for Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo.

Os argumentos dos que dizem haver tempo têm consistência. Propõem um recomeço de um período de dois anos, que teve um bom início, porém agora, momentaneamente, é marcado por um viés de baixa. Nesse recomeço, seriam decisões e providências essenciais aprofundar os investimentos em programas sociais para os mais pobres; reduzir o desemprego; controlar a inflação; manter a capacidade de investimento do governo; garantir uma maioria sólida no Congresso; combater radicalmente a corrução; refazer alianças políticas estratégicas com a classe média e setores religiosos; ampliar a presença internacional do Brasil.

Passos seguros, nesse sentido, não seriam novidade em um governo formado e sustentado por uma aliança de centro-esquerda, que até aqui venceu nove eleições presidenciais, tem história e força para recomeçar. No entanto, é urgente reconstruir a unidade interna, lançar pontes e ter a consciência de que a luta política é permanente. Nela, se empata, se perde ou se ganha. Só que, no Brasil, perder agora significa reabrir as portas do futuro para o bolsonarismo.

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