O legado autoritário do sistema de inteligência brasileiro – Por José Maria Nóbrega*

 

O estudo das instituições e sua evolução histórica é uma das principais matérias da Ciência Política. Entender o processo histórico de uma instituição é fundamental para entender o seu comportamento e as mudanças pelas quais essa determinada instituição passou durante os anos. A base teórica principal para estudar a evolução histórica institucional é o Neo-Institucionalismo Histórico. Esta teoria tem o foco no comportamento, nas regras formais e informais e no legado institucional. No nosso caso, iremos analisar a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e o seu legado autoritário em meio ao debate recente sobre o seu mau uso por parte da Presidência da República.

O conceito de Legado Autoritário pode ser definido como “um conjunto de regras, comportamentos, normas, padrões, práticas, relações e memórias originadas em um passado de experiências autoritárias, e que, como resultado de conflitos de configuração histórica e/ou política, sobrevivem à transição democrática e intervém na qualidade e na praxis das democracias pós-autoritárias” (NUMERIANO, Roberto. Serviços Secretos. A sobrevivência dos legados autoritários. Editora Universitária UFPE. Recife. 2011. p. 23).

Nas últimas semanas matérias jornalísticas destacaram o uso da ABIN como instrumento de espionagem ilegal. Como um exemplo, tivemos o caso da promotora do caso Marielle que foi investigada pela Agência de forma irregular, gerando uma conotação na qual houve motivação política para tal ingerência. Tendo a concordar com essa narrativa, já que a história da ABIN segue neste sentido. No sentido do uso indevido da Agência para fins políticos eleitorais.

A ABIN foi criada através da Lei 9.883 em setembro de 1998 no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Lei essa que instituiu o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN). Por meio de Medida Provisória, em janeiro de 2000, FHC tirou a ABIN da subordinação da Presidência da República e a colocou sob controle do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

Apesar de criada em período democrático, a ABIN seguiu muito os passos autoritários do antigo Serviço Nacional de Informações do antigo regime autoritário. A referida Lei de criação da ABIN diz que a instituição “busca fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional”, não definindo claramente o que é este “interesse nacional” objetivamente. Isso faz com que cada presidente venha a entender o que é “interesse nacional” o que pode lesar direitos constitucionais.

A ingerência do Presidente neste órgão é, portanto, uma regra. Mas, a subordinação da ABIN aos militares se mantém, mesmo em democracia eleitoral. É um claro entulho autoritário, pois além da ingerência do Presidente e da subordinação às Forças Armadas, há parco ou nenhum controle do Congresso Nacional (a casa do povo).

O Congresso Nacional tem na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) o órgão responsável pela fiscalização dos assuntos de inteligência. No entanto, este órgão não tem competência quando o assunto é a inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal (esta que faz parte do Ministério da Justiça e da Segurança Pública). Dessa forma, o Congresso Nacional não penetra nas instâncias mais importantes do setor de inteligência do Estado.

Segundo a Lei 9.883/1998, as atividades de inteligência no Brasil são de natureza civil e militar. Isso mistura a sua competência, pois as P-2 (serviço de inteligência das Polícias Militares) passam a se vincular também a ABIN. As atividades de inteligência das Polícias Militares são de inteira responsabilidade do Exército, já que as PMs são militares estaduais (um desenho institucional também pouco afeito à democracia), em que este arranjo institucional abre grande flanco para a ingerência militar em assuntos de inteligência, sobretudo os de natureza civil.

Dessa forma, a ABIN mantém em sua engenharia institucional e na sua cultura organizacional um forte legado autoritário no qual a segurança nacional é uma questão de “guerra” a um inimigo interno da Nação. Existe uma grande lista de denúncias de espionagem política que antecedem esta denúncia da promotora do caso Marielle e as demais denúncias de ingerência investigativa/administrativa em que membros do Judiciário, jornalistas e civis foram investigados de forma ilegal e que nos faz diagnosticar o uso da ABIN politicamente por diversos atores políticos, não só aqueles que vêm sendo acusados recentemente.

A ABIN segue, como na teoria do Path Dependence, uma trajetória histórica de espionagem política com o mesmo modus operandi de arapongagem e investigações com fins políticos da época do SNI da Ditadura Militar. É uma instituição que ainda não avançou para os parâmetros institucionais de uma democracia (consolidada), com parco controle parlamentar e forte ingerência do Presidente da ocasião e os interesses de seu grupo em paralelo a ingerência militar e os seus interesses que podem ser os mesmos do Presidente, ou não.

O Sistema Brasileiro de Inteligência deveria seguir os seus preceitos constitucionais em defesa do Estado de Direito Democrático e da dignidade da pessoa humana, devendo cumprir e preservar os direitos civis e políticos individuais e demais dispositivos inerentes à Constituição Federal. O que ainda percebemos é um forte legado autoritário em suas práticas políticas e eleitoreiras em vez de preservar a inteligência para fins de Estado e de Segurança Pública e Nacional.

*José Maria Nóbrega – Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco

Redação blogjosemarianobrega e blogdellas

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