Um dia de cão – Por Cícero Belmar*

 

Tande é pequeno, magro e muito ativo. Passou com facilidade pelo gradeado vertical que circunda o quintal da casa. Atravessou o cercado e seguiu o instinto de liberdade: para onde o focinho indicasse, aquele seria o caminho. Sem guia e sem patrão, o mundo era maior e mais largo do que o olfato fosse capaz de farejar. No caminhar apressado, foi deixando a casa cada vez mais para trás nos labirintos da cidade.

Criado dentro de casa, um poodle desconhece os perigos dessa vida. A verdade é que os sustos são grandes no meio da rua e os fugitivos de primeira aventura se deparam com situações de risco a cada passo. Solto e livre, as patas pareciam ter asas. Liberdade é produto caro e enganador. Às vezes, ir para as ruas, é o contrário da liberdade.

Tande viveu, até ali, 12 anos sob os olhares e cuidados de Dena e Carlos Lima. Naquele controle, era livre e não sabia. De pelos brancos, bem escovados, Tande sempre pareceu cachorro de rainha. Essa nova liberdade, a da fuga, tinha um preço que só os fortes podiam pagar. E ele era um cachorro-mané, sem experiência nem malícia.

Cada vez mais estressado, só sabia correr, distanciando-se ainda mais. Fugiu da casa onde a família estava morando havia poucos dias. No começo deste mês de dezembro, Dena e Carlos se mudaram para uma casa nova. Moravam no Recife e foram para a Praia do Janga, em Paulista. Terça-feira da semana passada, entre os afazeres, esqueceram-se de Tande. O cachorrinho deve ter se sentido sem ambiente e bastou um descuido dos donos para escapulir.

– Cadê Tande? Quando Dena procurou, o poodle já estava em lugar incerto e não sabido.

Os vizinhos disseram não ter visto o tal cachorrinho por ali. As buscas, nas ruas mais próximas, foram em vão. A tristeza tomou o lugar da alegria de estarem na nova casa. Tande fazia parte da família, não era apenas um animalzinho querido. Dena falava das qualidades do cãozinho: “Ele entende tudo o que as pessoas dizem; é tão sabido que só não fala porque não gosta da língua portuguesa”.

– Por que ele fugiu? Aqui ele tinha de tudo!

– Animal não pensa assim, Dena!

– A culpa foi sua, que deixou ele solto…

A mágoa da perda nasce quando a gente pensa que tem a posse de um cachorrinho. Agora era tarde. Carlos queria ser razoável: vai ver que o danado fugiu porque não entendeu que aquele era o novo endereço da família. Mesmo se fazendo de durão, Carlos chegou arrasado no emprego. Ele é o fotógrafo da mesma sala da assessoria de Imprensa onde eu trabalho. Aquele foi um dia difícil de vencer. A cada meia hora, ligava para casa.

– Já apareceu?

Além da tristeza, a preocupação: Tande era um idoso. Tinha 12 anos, que multiplicado por sete (não entendi o motivo da conta), era igual a um humano de 84 anos. Com essa idade, segundo Carlos, o faro do cachorro já é deficiente, assim como a vista. Certamente deveria estar desorientado por aí. E se algum carro… melhor nem pensar.

Alice Albuquerque é uma jornalista que também trabalha na mesma sala. Ligadíssima nas redes sociais e apaixonada pelos pets, ela fez uma montagem com as fotos de Tande, e a repassou dizendo que ele estava sendo procurado. Com algumas informações sobre o lugar onde foi visto pela última vez, enviou o direct para algumas páginas do Instagran, que atuam em Paulista, pedindo para ser divulgado.

À noite, o celular de Dena tocou. Era uma senhora, que também “adorava cachorros”, e que encontrou um animal perdido com as mesmas características de Tande. Talvez fosse ele. Se quisessem conferir, naquele instante, ela se encontrava numa farmácia etc e tal. A farmácia ficava a cerca de cinco quilômetros da casa. Àquela hora, o telefonema parecia estranho, mas como seria possível dormir sem Tande em casa?

Lá se foram Carlos e Dena, precavidos e ansiosos. Dena é católica e seguiu rezando um terço. Prometeu tanta coisa a São Francisco, o padroeiro dos animais, que é capaz de não cumprir a metade. Mas, valia a pena conferir. Quando o carro estacionou na frente da farmácia, o animal reconheceu o barulho e já se animou. Em poucas palavras, o reencontro foi uma cena de novela das seis.

A mulher contou que encontrou o poodle cansado, quietinho, sentado sobre as patas, numa praça. A língua de fora, triste e sujo, depois de um dia de cão. Pelas contas, ele andou no mínimo cinco quilômetros. Quando viu Dena e Carlos, Tande só faltou dizer oh, glória! Mas, como se sabe, ele não gosta do idioma. Foi levado de volta para casa, onde tomou uma tigela de água. Estava com muita sede.

Depois de um banho com os melhores xampus, que Dena lhe deu, uma medida virou lei: ficou determinado que Tande não teria mais acesso ao quintal. Graças à iniciativa, um tanto quanto restritivo-repressiva, foi assim que ele passou o Natal em família neste 2023.

Como esta é a última crônica do ano, e não existe passagem de ano sem se fazer plano para o ano seguinte, declaro que, entre os meus pleno para 2024, incluo a intenção de escrever uma história infantil inspirada na fuga do manezinho aí.

*Cícero Belmar é jornalista, escritor . Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. É membro da Academia Pernambucana de Letras.

E-mail: redacao@blogdellas.com.br

Compartilhar