Se os homens são de Marte, as mulheres são da paz: seria esta também uma questão de gênero? Por Rose Marie*
Somos chamadas de “guerreiras” com certa frequência, talvez pela capacidade de resiliência em momentos que muitos fraquejam. Mas a paz seria mesmo uma questão de gênero?
De 2019 a março de 2022, mais de 400 mil novas armas de fogo foram registradas no país, segundo dados da Polícia Federal (portal de transparência “Fiquem Sabendo”), sendo 96% das armas registradas em nome de homens e 4% em nome de mulheres. Pesquisa em setembro de 2022 (Genial∕Quaest), revelou que 82% das mulheres eram contra armar a população, enquanto apenas 63% dos homens expressavam esse posicionamento.
Pessoas de todos os gêneros podem ser agentes de alguma forma de violência e de paz. Talvez nós, mulheres, não sejamos exatamente pacíficas. Que diga quem já conheceu a nossa ira. Porém, somos mais frequentemente vítimas do que agressoras. E, reconhecidamente, agentes de paz. Se dependesse das mulheres possivelmente haveria menos guerras no mundo, menos conflitos armados. Em situação de guerra e conflitos violentos as mulheres e meninas são, desproporcionalmente, expostas a violência sexual endêmica (Mirjana Spoljaic, presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha).
E conhecemos as consequências familiares, sociais, econômicas que duram para além dos conflitos e das guerras, mesmo se estivermos do lado vencedor. Sabemos o que significa tratar de pessoas feridas no corpo e na alma, dos que ficam incapacitados por atos de violência. Sabemos o que significa manter os filhos em ambientes de conflitos violentos, do medo de mandá-los para a escola ou comprar pão, onde “balas perdidas” e a crueldade podem alcançá-los. Nossos guris, olha aí…
A violência que está nas ruas, nas instituições, nas casas, escorre também pelas redes sociais onde se observam ataques às mulheres, expressões de misoginia por vezes apoiadas por outras mulheres, ainda na teia da submissão, discursos perigosos que incitam vários tipos de violência.A violência de gênero permanece bastante naturalizada entre nós. Ela se refere às relações de poder e à diferença entre as características culturais atribuídas a cada um dos sexos que, nem sempre, são identificadas como tal. Suas raízes moram na dominação masculina, patriarcal e relacional. persistente na sociedade.
Se as mulheres estão aprisionadas a formas de submissão, os homens, por sua vez, estão enclausurados em formas de dominação. A quem interessa ambas as sujeições?
A violência contra as mulheres é considerada um indicador de se uma sociedade é propensa a conflitos violentos.O papel das mulheres para a paz social seria, então, apenas um atributo da sua frequência infinitamente menor de práticas violências explicitas, da sua condição de vítima ou da sua justificada aversão às violências? É mais potente do que isso.
Investigação sobre mulheres, paz e segurança, publicada em documento de referência para o estudo das Nações Unidas e do Banco Mundial, em 2017, forneceu fortes evidências de que o empoderamento das mulheres e a igualdade de gênero estão associados a resultados mais pacíficos e estáveis. A inclusão das mulheres nos processos de paz tem um impacto positivo na durabilidade dos acordos de paz, evitando assim a recorrência de conflitos. Incluir mulheres como negociadoras, mediadoras, signatárias e testemunhas aumenta em 20% a probabilidade de um acordo durar pelo menos dois anos, e em 35% a probabilidade de durar pelo menos 15 anos. Existe uma relação positiva entre a participação de grupos de mulheres e os resultados do acordo de paz. Quando as mulheres estão menos envolvidas, os acordos são alcançados com menos frequência e a probabilidade de se chegar a um acordo é ainda menor quando os grupos de mulheres não estão envolvidos.
A ONU reconhece que as mulheres são parceiras cruciais na consolidação de três pilares de uma paz duradoura: recuperação econômica, coesão social e legitimidade política. E indica que maior igualdade de gênero corresponde a menor probabilidade de um país utilizar a força militar para resolver disputas com outros países e em conflitos internos.
Se a gravidade da violência utilizada em conflitos externos e internos tende a diminuir com uma maior igualdade de gênero, como demonstram as investigações, parece fundamental continuarmos firmes na conquista de igualdade de direitos, para garantir uma presença equilibrada de mulheres em espaços de tomada de decisões na sociedade, no Estado, nas empresas, nas organizações sociais, nas comunidades.E que, ocupando esses espaços de poder, possamos nos livrar das armadilhas do modelo patriarcal e colonialista que conforma a sociedade e contribuir na construção da coesão social necessária para vivermos em paz e solidariamente.
*Rose Marie- Conselheira da Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz – UMAPAZ∕SP. Doutora em Saúde Pública (FSP-USP) e Mestre em Ciências da Comunicação Social (ECA-USP). Escreve para a IstoÉ. Texto compartilhado.Foto- Divulgação
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