Ano Novo e reconstrução – Por Margareth Dalcolmo*
E não é que o ano, mesmo com a triste memória, acabou?
Inexoravelmente como manda o calendário gregoriano.
Apesar de tudo, e por tudo o que esperamos, desejo um feliz, e se possível, suave Ano Novo a todos. Há dias, na triste soma de tantas perdas, escrevi a partir da morte de Nélida Piñon, que tisnou de tristeza nosso período de Festas e de expectativa saudável nos dias que se seguiriam, nesse novo recomeço, a que nossa obstinada esperança se agarra. Ainda perderíamos no apagar do ano, Pelé e o Papa emérito Bento XVI, ambas personas universais, cada uma em suas diferenças de força simbólica. E não é que o ano, mesmo com a triste memória, acabou? Inexoravelmente como manda o calendário gregoriano, desde sua criação em 1582, pelo Papa Gregório XII.
Anos estes últimos de muitas perdas, de excesso de lutos, de medos e angústias, nos quais a perplexidade inicial não justificaria a maneira de lidar com seres humanos, como testemunhamos neste mundo desigual, mas anos também de descobertas relevantes frente ao maior desafio de nossas vidas no último século. Entre essas seguramente as vacinas, responsáveis pela redução de mortes e de agravamento de casos, como já demonstrado por inúmeras publicações científicas neste biênio. Muito mais do que a gripe espanhola de há pouco mais de cem anos, que nas suas três ondas ceifou 50 milhões de vidas no planeta, a Covid-19 ao se disseminar rapidamente por força das características de virose aguda de transmissão respiratória, colhe o mundo do transporte aéreo, e revela sua face e circunstância em modalidade digital, mais do que guerras online como já assistíramos há duas décadas com as bombas da guerra do Iraque.
Se quisermos dar um sentido bíblico ao momento vivido, e sobretudo ao que ora vivemos, podemos fazê-lo desde o mais clássico, do latim religare, no sentido de voltar às origens, retomar o significado essencial de nossa existência, ou reconstruir, no sentido hoje incorporado não apenas como norte do discurso do novo governo que se inicia, mas no inconsciente coletivo, dos milhões de nós que lutamos contra o obscurantismo. Racionalmente nada será certamente tornado novo num país como o Brasil, onde os problemas crônicos, em especial a obscena desigualdade social se perpetuaram de modo quase perverso nos últimos três anos, por força da inépcia e da insensibilidade no compreender o alcance mais do que sanitário, a exigir agilidade e eficiência nas medidas tomadas tempestivamente, social, mais exigente ainda para mitigar o sofrimento dos mais vulneráveis.
Nesses tempos extraordinários que vivemos, seguimos comprometidos com o desejo de colaborar, dar o melhor de nós, para criar, criticar, desenvolver, implementar, certos de que saúde é também educação, e que estes são assuntos que impactam a economia, e são sobretudo tarefa para quem entende e gosta de gente. Yuval Harari em Notas sobre a pandemia diz que frente ao risco do que enfrentamos “o pior não é o vírus, mas os demônios interiores da humanidade”. E que podemos mais do que nunca, como se a nós estivesse dada uma chance única, “reagir gerando compaixão, generosidade e sabedoria, acreditando criticamente na ciência e não em teorias conspiratórias”. O homem, até para sobreviver no tamanho de sua ambição, há que reaprender a tratar melhor o planeta, a respeitar sua Gaya, acumulando menos para si mesmo e compartilhando mais. Terapeuticamente diria que essa é a melhor maneira de não precisar fingir, adotar convenções dissimuladas e não enxergar o que é dolorosamente humano e está frente aos nossos olhos.
Com essa reflexão, a comunidade médica e científica se alegra ao ler a nova estrutura do Ministério da Saúde, publicada no primeiro dia útil, por exemplo, com a valorização devida ao nosso exemplar Programa Nacional de Imunizações, o revigoramento de programas de controle de doenças prevalentes, de medidas que aliam a eficiência aos direitos da pessoa, sob um corpo técnico da maior qualidade em defesa do SUS. Seguimos.
*Margareth Dalcomo é médica, professora , integrante da Academia Nacional de Medicina, pesquisadora da ENSP-Fiocruz e colunista de O Globo. Texto compartilhado/Blogdellas.
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